ONDE JÁ SE VIU
e souza
Tivemos um cão com deficiência visual, no início vivia batendo a cabeça em tudo que é lugar, nas rodas do carro bateu nas quatro, só se livrou do estepe porque estava na mala. Não teve tanta sorte com os pés das cadeiras. Já no portão da casa ele tinha cautela e mantinha distância correta e segura. Ah o faro ! É incrível ! Depois se acostumou com as distâncias corretas, mas às vezes escorregava nos sentidos e dava de cara em algum vaso. Acostumou-se com os espaços e suas limitações, ele até desapareceu por duas semanas e conseguiu voltar pra casa, contudo foi uma vida boa e com muito carinho e fidelidade. O ano é 1891, nascia a mais paulista das avenidas, comemoremos então os 120 anos desta que é uma senhora, gentil e linda. A Avenida Paulista. E por falar em senhora gentil e linda, não deve ter sido muito feliz a vida de uma senhora com a mesma limitação do Faruk. Estava ela na Avenida Paulista, parada no meio fio para atravessar, pessoas passavam para ambos os lados, certamente apressadas com trabalho, horários, talvez um encontro, até talvez um último adeus e não há uma só alma para ajudar aquela senhora de cabelos branquinhos e ralos. Mas alguém com braços fininhos estendeu-lhe a mão ela segurou firme, contudo percebeu a fragilidade não apertou, só se firmou. Começaram a travessia das duas pistas movimentadas e na faixa de segurança as coisas tornam-se mais seguras. Já quase chegando do outro lado travou-se um diálogo de reconhecimento. - Quem é você? Perguntou aquela senhora gentil. - Sou doméstica de um apartamento próximo daqui. A senhorinha de cabelos branquinhos interpelou. - Não vá me dizer que você além de doméstica é pretinha? - A moça com sorriso na voz respondeu que sim e a mulher resmungou. - Que diabos a gente tem de se sujeitar, segurar num cambito fino de uma empregadinha e além de tudo é preta!... A moça com toda gentileza respondeu. - Por isso não. Segurou firmemente o braço da senhora e a puxou de volta para o lado de onde haviam saído e a deixou no lugar inicial e ordenou. - Então a senhora fique aí caladinha que eu vou procurar uma branquinha pra te atravessar. Em seguida sussurrou na orelha da velha. - A senhora pensa que é de que cor?
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