O RETRATISTA

Mais comum do que imaginamos, nas ruas das grandes cidades, desabrigados e invisíveis, sobrevivem pessoas de talento vencidas pelo vício. Não possuo dados estatísticos que comprovem, ou dê credibilidade a essa constatação, baseio-me em fatos do meu próprio conhecimento.

Nas ruas do meu bairro acompanhei a trajetória, em queda livre, de um personagem típico do que mencionei no parágrafo acima. Já o conhecia antes do nosso encontro numa praça. Ele rodeado por jovens, desenhando retratos em troca de bebida e cigarros. Cumprimentei-o e percebi que algo não estava certo. Embora nunca tenha tido uma aproximação, conhecia-o como profissional arquiteto, dito por colegas que freqüentavam o mesmo bar, na zona norte do Rio de Janeiro.

Fiquei observando sua técnica ao desenhar o rosto de um jovem. Não sou especialista, mas ele começava o desenho a partir de traços que no início pareciam inspirados em Oscar Niemeyer. Nos primeiros traços duvidei de que desenharia um rosto. Era como se, de repente, o Museu de Arte Contemporânea virasse a Monalisa. Talvez ele ainda sonhasse em projetar uma obra prima da arquitetura moderna e acordava quando percebia suas unhas pretas de grafite. Depois de olhar fixamente para o rosto do modelo, ali na praça, e para a tela, ele assinou O Retratista e recebeu um cigarro em troca.

Depois desse encontro, tive que intervir a seu favor, quando a caminho de casa, presenciei três garçons o agredindo, expulsando-o do local onde ele abordava clientes oferecendo serviços de desenho.

Eventualmente encontrava o retratista perambulando pelas ruas, e reparava que quanto menos tela tinha em seu bloco, mas decadente era sua aparência. Uma maldição comparável a de Dorian Gray.

Semana passada fiquei sabendo que o retratista estava dormindo na rua e, sabe-se lá porque, acordou assustado e atravessou a rua, sendo atropelado e morto. Ele há muito já não desenhava, era um pedinte que se mostrava arredio quando eu lhe cumprimentava.

Deixo aqui esse registro solidário aos arquitetos, engenheiros, jornalistas, professores, médicos, profissionais liberais e trabalhadores de todas os setores, que sucumbem ao vício e desperdiçam talento e a vida.

O Retratista, de onde se encontra deve estar traçando os contornos das montanhas, das estrelas.E, quem sabe, através de seu grafite desenhe, finalmente, o rosto do grande Arquiteto do Universo.

Ricardo Mezavila
Enviado por Ricardo Mezavila em 07/08/2012
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