Álbum de poesia

A normalista abraçava-se aos livros e aos sonhos. O sonho mais querido era aquele relativo ao notável maestro que produzia belas harmonias no coração da estudante. Entre aqueles livros havia o Álbum de poesia, um caderno especial no qual as moças daquela época anotavam os poemas de que mais gostavam. Esse tipo de caderno funcionava também como uma espécie de diário íntimo. Cada folha, numerada, era encimada por uma gravura alusiva ao texto copiado com uma caneta-tinteiro.

O texto que abria o Álbum da formanda do Curso Normal era um poema de Olegário Mariano. Faz bastante tempo que isto ocorreu, mas restou a triste lembrança de quanto se decepcionou a normalista em virtude dos ciúmes daquele com quem se casou quando já exercia a docência no ensino primário e também lecionava a disciplina Música e Canto Orfeônico. O álbum continha páginas de ilusão e inocência da juventude.

Houve um dia em que o marido encontrou o caderno deixado displicentemente em uma escrivaninha. Abriu, folheou, tornou a observar, desta vez com mais atenção. Havia uma epígrafe, detestou o que dizia o breve texto: “Você foi o único homem que me fez chorar (...)”. Foi sendo tomado o marido, foi se exasperando, foi ficando privado dos sentidos, da razão, enfim, estragou o tesouro da professorinha.

Aquele marido que era bom, amante e carinhoso não foi ensinado a se controlar, a reconhecer que a esposa teria sua privacidade respeitada. Então, tudo de bom que nele havia foi sendo afundado como resultado de seu ato impensado. O maestro ficou ainda maior, mais bonito e mais profundamente posto no coração da jovem senhora.

Ela, a professora, ganhou um olhar perdido onde uma orquestra se exibia sem sossego por toda a sua vida. Guardou cuidadosamente em um missal a foto do maestro que também executava lindas melodias ao saxofone. A de que ela mais gostava e sempre se emocionava ao ouvir, era o Besame mucho. Parece que sentia o beijo do seu amor de juventude em cada um dos acordes da canção. Os olhos da professora se enchiam de luares e serenatas.

O marido sabia, tinha certeza sobre o que naquela alma se passava, mas do coração da mulher ele não conseguiria rasgar as páginas da partitura amada.

Assim mesmo foram felizes, ela e o marido. E o maestro no pensamento. Sofria o marido porque chegava a ouvir o Besame mucho por toda a parte. Não saíam da mente daquele homem as páginas do álbum cujo primeiro poema parecia cozinhar-lhe o juízo.

BOEMIA TRISTE

Olegário Mariano

Éramos três em torno à mesa. Três que a vida,

Na sua trama de ilusões urdida,

Juntou ao mesmo afeto e na mesma viuvez...

Um músico, um pintor, e um poeta. Éramos três...

O primeiro falou:- Veio da melodia

De um Noturno, a mulher que me fez triste assim.

Amei-a como se ama a fantasia

E ela sendo mulher fugiu de mim...

Hoje tenho a alma como um piano vivo

Que mão nenhuma acordará talvez...

É por esse motivo que eu sou mais desgraçado que vocês...

Disse o segundo: -"Meu amigos, a sorte golpeou-nos, com a mais vil ingratidão

A mim levou-me à morte, o que eu tinha de melhor

A ilusão de que a vida era ilusão.

A força, a Graça, o Espírito, a Beleza

A estátua humana olímpica e pagã

Espelho, natural da Natureza

Nota da flauta mágica de Pan

Morreu com ela a Vida, a Luz, a Cor

Manhã de sol e tarde de ametista

A paleta e a esperança de um pintor...

Todo o delírio de um impressionista”.

Fez-se um grande silêncio em torno à mesa,

Silêncio de saudade e tristeza...

O terceiro baixou os olhos devagar

Disse um nome baixinho e não pode falar...

E, então, o marido se perguntava ao mesmo tempo em que imaginava a resposta: quem seria ele no poema?