Uma rosa para tal defunto.
“Se morre o rico e o pobre, enterre o rico e eu
Quero ver quem que separa o pó do rico do meu
Se lá embaixo há igualdade, aqui em cima há de haver
Quem quer ser mais do que é, um dia há de sofrer”
(Roda - Gilberto Gil e João Augusto)
Morto. Estou morto. Não tive possibilidade de retornar, ressuscitar para a vida novamente. Não declarei o que sucedeu para acabar sendo enterrado com meus outros parentes. De longe, vejo o meu corpo, e como mudou rapidamente, depois dizem que os mortos não mudam. Mudam! Horrivelmente transformou, porém, não evolui e nem houve retrocesso. Fui enterrado com meu tênis favorito, infelizmente, com a cor errada, passaram uma maquiagem exagerada sobre o meu rosto e o meu pescoço, e muito formol no meu corpo, para conservar a pele, sendo uma tentativa frustrante de manter uma imagem agradável à família e aos amigos e encheram de algodão os meus orifícios, fechando-os com uma super cola. Agora o meu lamento diz que fui muito vaidoso. Eu machuquei minha própria ferida, e meu orgulho. A vaidade apodreceu junto com a carne. Assustou meu orgulho e a minha beleza. Os meus tratamentos estéticos e as academias não eram eternos, a vida também não. Junto com a morte, há uma história, numa vida morta, como a minha. Não fiquei preocupado, é perfeitamente universal e comum o corpo passar por diferentes mudanças. Quando meu coração parou, as células e os tecidos não puderam mais respirar. Em três minutos as celulares cerebrais disseram adeus. Os meus ossos e a minha pele, entretanto, sobreviveram, por mais poucos dias. O sangue começou a ser drenado dos vãos sanguíneos para as partes inferiores do meu corpo. Fiquei pálido em certas partes e noutras escuras. Algo me diz que meu corpo seria, em pouco tempo, temperado por substância esverdeada que o próprio corpo liberará, estimulando os interesses das moscas, preparado para conviver com cerca de 300 larvas. Enfim, mas, antes disso, exatamente, três ou quatro horas após a morte, endureceu os meus músculos, 12 horas depois a pele esfriou e mais 12 horas, depois, perdi o calor interno. Já conformado, as bactérias começaram a desintegrá-lo, dissolvia sozinho, como se nunca tivesse existido. Aparência, terrível, e o odor forte e desagradável. A vaidade não dizia mais nada naqueles momentos e os fluidos saiam da boca e do nariz, os pulmões os expeliam. Insetos, com certeza, sentiram o sinal para o jantar, tornei-me um lugar agradável para deixarem os seus ovos. Nasceram larvas com muita fome. Assim, amamentando-se de fluidos que escorriam no meu corpo, logo depois, partiam para dentro de mim. Inicialmente apresentavam dois milímetros os meus filhotes. Sim, chamava-os de meus filhotes. Já que os alimentei da minha própria carne. Cresceram, dez vezes mais. A cada minuto percebo meu corpo indo embora, por fim, não tenho sensação alguma, não sou mais dono dele. Estranho um vaidoso dizer isso, contudo, a gente aprende a jogar. Quando é queimado e sai jogo, você revê os seus erros. Às vezes temos que “morrer” para nos tocarmos do que a gente tinha de tão importante. Desfiz-me das futilidades, da qual, a vaidade fazia parte. Também não iria adiantar em nada. Absolutamente, nada. Deixei-me seguir pela consciência, mas, minha consciência estava suja de ideias equívocas e iludidas. Agradeço ao sofrimento dado a mim, ensinou-me a ter coragem, quando vi minha aparência partindo, e as dúvidas misteriosas continuaram a serem dúvidas misteriosas. E não há volta, o tempo não deixou arrumar, tem coisas incorrigíveis que serão eternamente, para sempre. Chego ao fim, dedico essas palavras aos meus pais que se não tivessem embriagados não teriam uma gravidez acidental, desenvolveram o meu corpo e a minha falta de educação. Calma. Não se preocupe. Fui filho único, não haverá outros iguais a mim. E dedico às larvas que me fazem companhia, com uma parte de mim, nas noites, no cemitério, com vários outros túmulos. Em conclusão. Aqui debaixo é um restaurante com a raça humana. O cardápio completo. Adeus e lembre-se “Todos os meus dias são um adeus”, dito uma vez pelo escritor e político francês, François Chateaubriand.
Crônica inspirada na obra de Machado de Assis. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).