As pernas e o poder

Aconteceu há muito tempo, na década de 80.

Eu trabalhava numa agência e tinha muito pouca noção da hierarquia da empresa. Naquela época, as agências eram enormes, chegavam a ter mais de 200 funcionários. Meu universo era aquele. Fora do prédio antigo funcionavam estruturas para mim desconhecidas. Mas havia um funcionário que eu tinha certeza que era sim, muito importante.

Não trabalhava no nosso prédio. Homem de meia idade, aparência e fisionomia sóbrias, ele nunca chegava sozinho. Terno e gravata, sempre acompanhado de pelo menos uns três ou quatro funcionários, sua aparição na agência tinha o dom de congelar qualquer cena. As vozes se tornavam murmúrios, os cumprimentos, educados; as mesuras se sucediam, enfim, tudo passava a gravitar em torno dele. Imediatamente, da copa chegava o café, servido em xícaras de porcelana sobre bandejas prateadas. Reunindo-se com os mandatários da agência , permanecia durante muito tempo a portas fechadas. Ao sair, novamente os sorrisos e mesuras até que ele se retirasse acompanhado de seu séquito deixando atrás de si a aura do poder.

Anos depois, a hierarquia da empresa já não era para mim um mistério. Conhecia estruturas dentro e fora do meu estado, já viajava a serviço e exercia outras atividades fora as da agência. Então num dia de pagamento de salário de funcionários, me vejo no hall da agência e percebo na fila dos aposentados uma fisionomia familiar.

Era dia de agência cheia. Os aposentados utilizavam este dia para reencontro com os amigos, atualização de fatos sobre o Banco e por que não? Jogar conversa fora, agora que o tempo a eles pertencia. Mas no meio do burburinho, entre os aposentados, há um deles que não parece interessado em conversa. Impaciente, olha para todos os lados, buscando talvez um conhecido que o livre da fila, do incômodo de permanecer ali em pé, já que os colegas aposentados não aparentavam ter a menor pressa em serem atendidos.

Então, num lampejo me volta a lembrança. Dos murmúrios, do recado urgente para a copa em busca do café, dos sorrisos de cortesia. Sem terno, gravata ou séquito, usando uma camisa esporte e uma inacreditável bermuda, ele agora é um aposentado como qualquer outro. Não resisto e lanço um olhar para suas pernas. Eram pernas feias.

Observando aquele homem na fila sozinho, tentando a todo custo ser reconhecido por alguém que não chega, reflito sobre a solidão do poder. Longe do cargo, na fila, um homem comum, inclusive com um atributo comum de ter pernas feias. Que lembranças lhe povoariam a mente, enquanto inutilmente andava ao longo da fileira de Caixas buscando ajuda? Onde naquela hora repousariam as camisas impecáveis, o terno escuro e o séquito? Onde andaria o séquito?

Dobrados e guardados, na gaveta das lembranças amareladas do poder.

Vania Rebelo
Enviado por Vania Rebelo em 06/08/2012
Código do texto: T3816435
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