Reflexões de uma relação
No meio da tarde ela chegou a uma sorveteria de lugar espaçoso. Dezenas de sabores descritos no alto da parede seduziam o freguês a demorar mais do que o normal para decidir o que pedir. Algumas mesas eram ocupadas por casais de namorados, cônjuges, amigos e uma mulher só como ela. Num dos bancos da parte externa um jovem casal se olhava e trocava carícias. Uma das mesas era ocupada por uma meia dúzia de homens que conversavam animadamente. Depois chegou uma mãe com um casal de adolescentes que ao receberem seus respectivos sorvetes ocuparam uma mesa deliciando-se com seus pedidos. Ela sentiu-se incomodada e pensou em sair, mas percebeu que ninguém olhava para ela, pois ali quem não estava degustando seu sorvete já havia feito isso e estava envolvido em conversas, deixando o tempo passar preguiçosamente livre do calor daquela tarde equatorial que ardia lá fora. Não muito entusiasmada ela apontou e indicou em voz baixa o sabor que queria. E dois minutos depois ela ocupava uma das mesas com uma taça de sorvete. Enquanto sorvia, sem muito entusiasmo, um dos sabores que mais gostava, ela pensou nele. Quinze minutos antes ela o deixara em um café aonde ele fora se encontrar com alguns amigos e que não teria hora para chegar a casa indo de carona com algum deles. Não se tratava de nenhum assunto profissional, apenas uma reunião informal de pessoas que gostam de conversar entre si. Teve vontade de chorar, mas conteve-se, pois não queria despertar a curiosidade ou comiseração de alguém, coisa que não passava por sua cabeça. Passar ou ser vista como vítima nem pensar. E se perguntou o que tanto conversavam seu marido e amigos. Uma ideia de criança veio a sua cabeça. Queria ser uma mosca para ouvir o que falavam e saber o que realmente seu marido gostava de ouvir e gostava de falar, o que realmente após 15 anos de relacionamento ele se interessava em ouvir e falar para seus interlocutores, levando a trocar sua companhia e o convívio familiar com aqueles encontros e reuniões dos quais não tinha dúvida que ocorriam, mas que aqui e ali eles falavam do sexo oposto com risadas e tiradas maliciosas. Mas, era apenas curiosidade, pois tinha certeza que mesmo sabendo literalmente dos assuntos que eram abordados naqueles encontros se saíssem de sua boca não iriam interessar seu amado, deixa-lo embevecido como com os colegas e amigos. Aliás, quase já não conversavam. Tinha saudade do tempo em que se conheceram quando varavam a madrugada conversando alegremente, descobrindo as afinidades existentes, às vezes chegando a pronunciar em uníssono suas exclamações de aceitação, admiração ou desaprovação quando assistiam sessões de cinema, teatro e concertos juntos. Descobriam-se diariamente juntos gostando das mesmas coisas, dos mesmos poemas, das mesmas músicas, das mesmas peças, dos mesmos autores. Mas ultimamente, em casa ela iniciava uma conversa e quando se dava conta estava falando só, com ele ao telefone ou deslocara-se para outro cômodo da casa ou lia ou mexia em outra coisa. Nos deslocamentos de carro, quando ia alguém ele puxava a conversa com quem quer que fosse. E quando era com as crianças ia fazendo perguntas que poderia ter feito em casa, com mais profundidade, ou então reclamando do trânsito ou, o pior, falando ao celular às vezes durante todo o deslocamento. E fora assim quando se deslocavam naquele dia, terminado por se despedirem com um burocrático beijo. Ela que vivia brigando com a balança sentiu vontade de pedir mais uns três sorvetes, mas conteve-se. Apanhou o celular da bolsa e fez de conta que ligava para alguém, enquanto pensava nele. Há dez anos, quando ainda não havia as crianças, eles faziam longos passeios, só os dois, durante noites enluaradas, ela agarrada a ele enquanto dirigia o carro até chegarem a algum restaurante de estrada. Sentavam e seu olhar era unicamente para ela. Mas, com o passar do tempo ele se desinteressou pelas coisas de casa. Continuavam se desejando, saiam ainda juntos, participavam de alguns eventos, viajavam, agora com as crianças, mas já não era a mesma coisa. E se não fosse pelas crianças o convívio seria monótono. Quando ela estava saindo da sorveteria o casal de namorados ainda ocupava o mesmo banco na calçada e se dissolviam em sorriso e olhares. Sentiu vontade de parar e dizer para que eles aproveitassem aquele momento o máximo que pudessem. Claro que não teria coragem de fazer aquilo. No mínimo a achariam louca. Riu para si e encaminhou-se ao carro estacionado em frente. Sairia dali e entraria em algum shopping qualquer para gastar o tempo escolhendo roupa para as crianças até dar a hora de apanhá-los na escola de música e retornar para casa à espera de seu amado para sentir sua presença. E sofrer em silêncio com a mudança dele, sem imaginar até quando iria se estender aquela situação mesmo que tivesse que sorrir para esconder a tristeza e não deixar que percebessem, principalmente ele, o quanto ela sofria.