A identidade secreta do meu pai

Tive. Tive. Detetive. Meu pai é detetive e o seu é despachante.

Ah, vai dizer que você nunca cantarolou esta música para seus colegas na escola? Principalmente no ensino fundamental onde tudo que está ligado à nossa intimidade é motivo de suposições e invenções - algumas muito mirabolantes, diga-se de passagem.

Por estes tempos estava voltando para casa e passei em frente a uma escola bem no horário da saída dos alunos. Enquanto os mais novos eram aguardados pelos responsáveis, os mais velhos se aglomeravam em grupinhos. No exato momento que cruzava uma destas rodinhas pré-adolescentes um carro - de uma marca que não faço a mínima ideia qual era - passou pela rua do colégio. Era um carro digno dos Velozes e Furiosos. Todos os molequinhos - e eu - pararam o que estavam fazendo para contemplar a supermáquina desfilar pelo asfalto. O silêncio foi interrompido por um dos garotos que gritou:

- Falou, gurizada! Preciso ir embora. Meu pai veio me buscar.

Balela do rapaz de franja penteada para o lado. Não era o pai dele. Mas esta cena me lembrou dos tempos de escola primária onde disputávamos para ver quem tinha o pai mais legal.

Eu nunca ganhava. Não porque meu pai não tinha qualidades, mas porque eu não sabia potencializá-los.

Meu pai não era detetive, nem médico, nem advogado, nem jogador de futebol, nem bombeiro. Fora isso não havia como impressionar o resto da garotada. Exceto por uma coisa: ele tinha que ser um super-herói.

Hoje eu consigo enxergar o que não conseguia na infância: meu pai é um super-herói. Estou falando sério. Não é uma análise social ou psicológica de superação. Isso não é uma crônica de autoajuda. Meu pai realmente é um super-herói.

Ele não tem superpoderes, não veio de um planeta distante, não foi mordido por um inseto radioativo, não é um milionário órfão traumatizado, não inventou uma armadura de guerra ultra tecnológica. Mas meu pai tem o que é fundamental para qualquer super-herói: uma dupla identidade.

Isso aconteceu há muito tempo atrás no longínquo ano de 1951. Meu avô, seu Júlio, era casado com a dona Maria, minha avó, mas não se davam muito bem. Aquela coisa de casamento por conveniência típico da época. Quando meu pai nasceu meu avô queria um nome e minha avó queria outro. Meu avô queria Adroaldo. Minha avó queria Vanderlei. Esse impasse durou toda a gestação e período pós-parto. Chegado o dia de registrar o primeiro varão do casal meu avô o levou ao cartório. Sem a companhia da minha avó. Quando voltaram, para a surpresa da dona Maria, o nome de seu filho não era Vanderlei, mas Adroaldo.

Poucos anos depois, meu pai ainda era criança, eles se divorciaram. Ambos se casaram novamente e constituíram novas famílias. Quando meu pai ficava com meu avô ele era chamado e tratado como Adroaldo. Quando ficava com minha avó ele era chamado e tratado como Vanderlei.

No decorrer de sua vida ele viveu com uma identidade secreta. Todas, absolutamente todas as pessoas que se relacionaram ou ainda se relacionam com ele o chamaram de Vanderlei. Minha mãe, ou seja, sua esposa. Os parentes da minha mãe. Os amigos dele. Os colegas de trabalho. Até os chefes se referiam a ele desta forma. Todos o chamavam pelo nome que minha avó escolheu. Mas legalmente, em sua carteira de identidade, na certidão de casamento, nas certidões de nascimento dos filhos ele é o Adroaldo.

A identidade secreta do meu pai sempre gerou muita confusão na minha cabeça. Não sabia como falar aos meus colegas seu nome. Primeiro porque não conseguia falar Adroaldo. Enrolava a língua toda a vez que tentava pronunciar seu nome. Depois porque sempre virava motivo de piada entre os de bochechas rosadas que estudavam comigo.

- Adro o quê? Aldroaldo? Adroaudo? Alduardo? Como é mesmo?

Ficava furioso com as chocarrices. Para evitar este tipo de situação optei por simplificar as coisas. Passei a chamá-lo de Vanderlei.

Na verdade meu pai não é apenas um super-herói. Ele é quase uma divindade personificada. Dois nomes é pouco para a complexa estrutura que ele apresenta. Um senhor já de idade, baixinho, cabelos grisalhos na maior parte da cabeça, olhos verdes - por que não puxei isso dele, Deus? -, narigudo, queixudo, testudo, ranzinza e detentor de um proeminente bigode.

Uma breve caminhada com ele no Mercado Público de Porto Alegre deixa claro as diversas facetas que ele assume. Através dos inúmeros pseudônimos que vou ouvindo consigo discernir a dimensão da relevância que ele tem em qualquer ambiente que esteja inserido.

Os apelidos que mais ouvi eram: Tiririca, Marquito, Professor Raimundo - nada a ver na minha opinião -, Olívio, Bigodeira, Pedro de Lara - o melhor, ao meu ver - e mais alguns que não vem ao caso.

Ha! Meu pai é mais que apenas uma pessoa e o seu é um só. Lero, lero.

De todas as identidades que meu pai assume uma é especial. Aquela que apenas eu o chamo e aquela que ele responde apenas para mim:

- Pai.

Eduardo Dorneles
Enviado por Eduardo Dorneles em 03/08/2012
Reeditado em 03/08/2012
Código do texto: T3811852
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