DIÁRIO DE QUEM ESTÁ PRA MORRER (fragmentos)

Acho que estou perdendo a gravidade, às vezes sinto que meus pés estão flutuando dentro dos sapatos. A borracha da sola é que está presa a terra, como um peso, uma âncora que não permite que o navio adentre o mar a caminho do horizonte. Minhas pernas apenas aparentam estarem pesadas, na verdade são como pilastras de vento fincadas na areia.

Estou me sentindo um estrangeiro, um peixe fora d’água, desconfortável com o oxigênio, um homem metido em calças curtas saindo do pub segurando um álbum de figurinhas e um copo de Martini. A cada esquina um surto, uma topada, uma risada fora de hora, uma rasteira. Alguém me chama da janela, mas não há luz no poste da rua, não há lua boiando no céu estrelado da minha cidade, não há ninguém me chamando da janela, é só o ruído da cama denunciando uma traição.

Agora estou chegando em algum lugar onde as pessoas me cumprimentam, seus rostos rechonchudos não me lembram nada. Como uma resposta sem pergunta, vou passando por ali como uma peça que passa pelo último estágio de sua fabricação. Depois está pronta para o selo e embalagem.

Olho por baixo de um muro flutuante e atravesso a fronteira, estou em outro instante, ouço o silêncio de um instrumento encostado; toco no vazio de uma respiração tranqüila; vejo a beleza colorida do escuro; sinto o aroma das sementes de sândalo sob a terra; mastigo o lado doce do oceano.

Os cadarços de meus sapatos retrocedem seus últimos movimentos e vão recuando entre os furos, aliviando o peso e vou ganhando altura. Os edifícios pastam nas avenidas, as ruas são como serpentes sufocando as casas e os homens se ocupam do medo de não estarem ocupados em coisas banais. Sou envolvido por um bando de pássaros que migram rumo ao norte para reproduzir e criar seus filhotes. Acho boa a ideia e começo a longa viagem.

Ricardo Mezavila
Enviado por Ricardo Mezavila em 02/08/2012
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