Não ganhamos ouro, mas batemos recorde de resistência ao caos
O povo na maior alegria, na plenitude do entorpecimento cívico, pelas ruas esburacadas de minha Itabaiana do Norte, cordeiros, pacatos, pacíficos e mansos, contentes por força da lógica pusilânime da cultura política local.
Em “Hiroshima meu amor”, Marguerite Duras escreveu: “Você me mata e me faz bem.” No meu lugarejo, as pessoas encontram o esquecimento de toda humilhação e carência nesses dias de folia eleitoral. Cada um toma partido e sai nas ruas, digamos, festejando sua própria inconsciência cidadã.
Vibrante como uma televisão fora do ar, o momento da disputa eleitoral com sua sombra viva alcança a todos. Se não houvesse eleição não haveria carnaval fora de época e de propósito, se não houvesse carnaval não haveria despesas para o carnaval e circulação de moeda, o mais das vezes de origem suspeita. Então, viva a eleição! Único momento em que realmente se dá a tão falada distribuição de renda nesse país tão desigual.
A assimetria social também se atenua nesses períodos. Os ricos procuram os pobres, comem seu cuscuz com margarina, bebem seu café forte, apertam suas mãos esquálidas, distribuem o escasso sorriso rotineiro às fartas, promovem o modesto empregado em companheiro, fazem da pobreza o mote de seus discursos.
O velho aposentado, com mais de dois meses sem receber da Prefeitura, alcançou o candidato no meio da massa barulhenta e pediu. O velho teve um sentimento ruim por ter que pedir dinheiro a uma pessoa que era, de certa forma, responsável pelo atraso do seu minguadíssimo salário. Não era despeito, mas uma humilhação triste, parada, sem muito sentido na sua cabeça de ancião secularmente explorado. O candidato ficou olhando o velho com uma cara de censura. “É proibido dar dinheiro a eleitor”, explicou o candidato.
O velho saiu andando em câmara lenta, em sentido contrário à turba alegre. Quando olhou em torno e se viu sozinho, ficou imobilizado na areia movediça do seu desespero. Sentia com nitidez que estava sendo tragado por um mar que nascia dentro dele mesmo, e gritou que ia ser afogado. O grito escalou sua garganta e se perdeu no mar de gente que urrava o nome do candidato.
Voltou para a passeata, calmo. De vez em quando parava, sentava no meio-fio pra descansar. Alguém perguntou:
--- Tudo bem?
Mas ele não respondeu. Chegando em casa, a velha esposa estava acabando o culto evangélico. Lia na Bíblia que “a salvação vem pela graça e a graça é de Deus”. O velho não entendeu a frase. O pastor explicou:
--- Você não pode salvar a si mesmo.
O velho pensou que era muito pobre, mas de muita caridade. Pensou no candidato, no salário de menos de 500 contos por mês, na criança que morreu de caganeira, da vizinha. Pensou na passeata. Assim como Deus, o candidato não desampara ninguém, pensou por último, e foi dormir.
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