Caixa de Areia (Nos Olhos)
Ele abre a porta de casa. Teve um dia árduo. Tedioso. A primeira coisa que faz é ligar o computador. Não é nem tirar a mochila pesada das costas, a camisa social que detesta usar, o tênis que está esmigalhando seu pé direito, causando dores no joelho, espremendo uma unha encravada. Tem se dedicado bastante à lobotomia a longo prazo que é a internet. Tira o tênis, tira a meia. Aperta a ponta do dedo cuja unha mal-cortada fincou-se à carne; uma bolha de pus com sangue vai assomando, aumentando, conforme a pressão se faz. Tira o excesso com um pedaço de papel higiênico que retira do bolso da calça. A gata surge, curiosa, miando, enfiando o nariz na ferida. Ele alcança um cortador de unha e vai fazendo o possível. Não consegue nenhum progresso. Vai até a cozinha, lava as mãos, come duas bananas, coloca uma bermuda, passa desodorante nas axilas e vai pra academia. Fica pedalando durante vinte minutos. Sai da bicicleta, vai até o bebedouro, vai pra esteira. Anda dez minutos, corre cinco, anda cinco. Apreciando garotas fazendo agachamento. Fazendo agachamento lenta e sensualmente. Volta pra bicicleta e pedala mais vinte minutos. O suor escorre pelas têmporas. Ele sequer se lembra da última vez que porejou fazendo exercícios. Não suava trepando - não no inverno. Não considerava trepar um exercício, na verdade. Terminou com a bicicleta e caminhou até aquela casa que há muito havia deixado de considerar um lar. Abriu a porta e imediatamente o cheiro de pizza assaltou-lhe as narinas; dirigiu-se à cozinha, porém se deparou com uma caixa vazia, com oito azeitonas abandonadas; a gata sentada ao lado da caixa, miando de maneira desalentadora. "Cambada de filhos da puta", ele grita, puto da vida. "O que foi?", devolvem. "Esse bando de arrombado passou o dia inteiro cortando cana, né? Passaram o dia inteiro enchendo laje, esses filhos da puta? Porque só isso justifica essa gula desmedida!". A bronca ignóbil atravessa a casa, em direção aos tímpanos que sempre a ignoram. Ele pega a toalha, entra no banheiro, fecha a porta, liga o chuveiro, entra debaixo d'água e fica se perguntando se a vida dentro do sistema carcerário é muito ruim. Depila o saco e a virilha e as axilas com gilete e sabonete. Sai do banheiro já mais calmo, enrolado na toalha, se perguntando se a tanatologia é uma arte ou se a arte é uma tanatologia. Pois parecia estar morto. Sua arte morta. Seus dias mortos. Carcaças de horas em sépia esfarelando ao vento feito folhas secas mortas. Bota Lemmy Kilmister cantando Stand By Me no computador e prepara um pão de forma de anteontem na chapa. Assiste a um filme pornô enquanto come. Depois que termina, vai até o espelho do banheiro. Escova os dentes. Ignora a barba por fazer - barba que faz com que narizes se entortem no ambiente de trabalho -, ignora as olheiras, os olhos vermelhos, e escancara a boca. A vida... Segundo uma doutora, estava com amigdalite caseosa. Tudo começou no final de semana, quando sua namorada estava reclamando de que ele estava roncando de maneira excessiva, escandalosa; ele, que raramente roncava. Na segunda, sentiu certo desconforto na garganta. Na manhã da terça arreganhou a boca diante do espelho e viu a amígdala destacada; um pedaço de carne nojento, retorcido, corrugado feito um cu. "Câncer", pensou. À tarde, novamente olhou a criatura cancerígena e ela estava com pontos brancos. "Pus. É câncer!", pensou ele, num misto de desespero e alívio. Sofrer com um cancro: desespero. Morrer mais rápido, atenuando os aborrecimentos da vida: alívio. Consultou sua médica. "Teve febre?" - Não. "Dor?" - Não. Não, não. É nojento. Tem uma bola branca. Sinto gosto de sangue. Parece que comi uma pratada de merda das minhas gatas, pois sinto um gosto terrível. "Sem dor, sem febre, mau hálito... Deve ser amigdalite caseosa". "Caseosa", pensou ele, "parece com 'cancerosa'". "É câncer?", perguntou. "Não, fica tranqüilo que isso é normal... É nojento, mas é normal". "Mas como eu trato isso? Tem cura? Tem remédio?", ele pergunta, desesperadinho da vida. "Não tem cura, não...". Ele, incrédulo, pergunta: "Então quer dizer que vou andar por aí com um bueiro aberto no lugar da boca a perder de vista?". Aí vai ele na internet pesquisar sobre. E vê um vídeo de uma extração das coisas brancas. Amígdalas inchadas, com criptas que acumulam restos de alimentos, sendo reviradas com utensílios prateados manuseados por doutores. Foi até o banheiro, enfiou o dedo na goela e raspou com a unha até que toda a placa branca foi removida. Passou os dois dias subseqüentes repetindo o processo. Agora ele está no banheiro. Ainda está no banheiro. Contemplando a barriga que teima em crescer. Seu irmão, munido de uma guitarra usada pra jogar videogame, faz um barulho irritante; botões sendo apertados repetidamente; barulho bem alto, todas as luzes acesas, menos de sete horas pra dormir, pra descansar pra outro dia reprisado, blablablá. Ele agacha com uma sacola em mãos diante da caixa de areia das gatas. Elas ouvem o barulho dos grãos endurecidos sendo escavados, da pá em atrito com o plástico, e vêm correndo; ficam entre suas pernas, ou ao lado, acompanhando todo o processo de higienização. A amônia pinicando no nariz. Depois de encher uma sacola com a porcaria, ele lava a caixa no tanque. Esfrega tudo com esmero. As gatas sobem na máquina de lavar ao lado e ficam olhando. Ele deixa a água escorrendo enquanto varre o chão e pega o saco com a areia nova, limpa, cheirosa. Abre o saco e despeja na caixa. Dez segundos depois, a gata já está na posição clássica de cagar; ele agachado diante dela, ambos se contemplando, se encarando; um amor de pai e filho; o amor de Klara Pölzl limpando o cu do bebê Hitler, etc. Então, ele apaga as luzes, toma um gole d'água direto da torneira, apaga novamente as luzes, desliga o computador, deita, se cobre, e fica rolando amaldiçoando o barulho da guitarra, apertando o travesseiro, se segurando pra não saciar a vontade de explodir e deixar meia dúzia no chão com os ossos quebrados e retorcidos. E dorme, talvez.
02/08/2012 - 01h34h