[Crônica do Adiamento]
[Só a ironia nos pode salvar... inclusive, de nós mesmos]
Olha só: será... será que eu sou estranho?! Eu pratico o adiamento, com arte... sim, às vezes, quando tenho um certo "que fazer", uma promessa, um compromisso, eu o analiso a ver se pode ser adiado... adiado por nada, pelo prazer de fazer cinza das horas passantes... "sem fazer", "sem cumprir" nada! Prolongo o quando: gosto da apalermante sensação de que nada está acontecendo... por enquanto!
Nos meus experimentos de Física, eu tinha de esperar o reator nuclear atingir o estado de criticalidade — aí, sim, eu atingia o prazer de realizar a experiência do dia! A arte do adiamento é algo parecida com a operação do reator: eu aguardo [confesso, com certa ansiedade até!] o momento em que eu sinto que a coisa está para entrar no estado crítico. Então, conjurando a frase de Nietzsche — o homem é um animal que faz promessas — calmamente, eu entro no meu carro, e saio rumo ao abatedouro daquele "que fazer" — o estado de criticalidade foi atingido; chegou a hora; não é possível adiar mais! Dá-se, então, a colheita suprema: o prazer de executar a tarefa, mas só depois de experienciar a arte de submetê-la a um adiamento, isto é, só depois da trilhar a curva ascendente que leva à criticalidade do instante — que pena! — de curta duração!
Há milhares de anos estamos aí, na superfície do planeta, milhares... e nem triscamos em resolver a questão da Ética — estamos não no Neolítico, mas no Paleolítico Moral — e a meu ver, sem esperança de solução... Pressa, para quê? Adiar, adiar, e adiar... a solução, para não perder o espetáculo da grande comédia de erros, da visão dos grandes escroques, triunfantemente à solta, pontificando a vida política do país! Médicos, adiem, adiem... bombeiros, para que a correria pelas ruas — adiem, vão devagar, vão sorrindo; policiais, adiem, adiem mesmo quando o assalto ao Banco poderia ser evitado se as viaturas fossem enviadas às carreiras.... Adiemos todos — quem sabe estejamos necessitando de um estado de criticalidade nacional, geral, para evidenciar as ações de cura de tantos males! Alguns querem que já estejamos perto, bem perto desse estado...
Se milhares de pessoas estão sofrendo para que alguns poucos pratiquem o adiamento de projetos importantes que estão há anos engavetados, amarelados da malemolente tramitação, e assim, beneficiem os que estão lucrando com o retardo, que mal há se eu, que nem falta faço ao mundo, adiar alguns insignificantes afazeres surgidos no meu horizonte próprio?
Faltou-me, no entanto, adiar a escrita desta "crônica do adiamento" — humano sou: eu erro!
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[Desterro, 31 de julho de 2012]