Minha amiga revolucionária

Quando nos encontramos, passamos horas conversando e não conseguimos colocar o assunto em dia. Começamos a nos lembrar do tempo do colégio, dos professores, dos nossos amigos. E um assunto dá início a outro. Vamos tentando atualizar as notícias. Conto da nossa amiga que se separou, ela fala da outra que se mudou para a Itália. Ela diz: “Quem diria, fulana começou a namorar tão cedo e não se casou.” Dou notícias do seu antigo amor e ela diz: “Que sorte eu dei, de quem eu me livrei!”.

Ela sempre foi extremamente convicta das suas opiniões, sempre dona das suas decisões, “cabecinha dura”. Formou-se em Filosofia e ficou com o espírito crítico mais apurado ainda. Mas sempre nos demos muito bem. Nunca houve desentendimento entre nós, pois nossas ideias eram semelhantes.

Hoje se encontra revoltadíssima com o descaso das autoridades com o serviço público, com a aposentadoria, com a Reforma da Previdência. Disse que agora quer gozar todas as férias-prêmio que estavam acumuladas, pois chegou à conclusão de que, se for esperar aposentar-se para fazê-lo, não sabe se terá disposição para aproveitar esta fase da vida já que nem sabe quando ocorrerá.

Até hoje ela se lembra dos comícios do Tancredo Neves e diz: “Eu fiquei pertinho do Ulisses!”. Ao falar desses dois líderes, os seus olhos brilham de orgulho por ter feito parte desse importante momento de transição que o país vivia. Quando recorda que estava em frente ao palanque, ouvindo aquele importante discurso de Tancredo, nos faz sentir um pouco espectadores, tal o realismo de sua narração. Foi nesse discurso que ele disse a famosa frase: “O compromisso de Minas é com a liberdade”. Depois, com uma ponta de tristeza, conta que foi com as amigas prestarem-lhes as últimas homenagens. Esperaram até duas horas da madrugada e saíram a pé do centro de Belo Horizonte rumo ao Palácio da Liberdade, pois se fossem mais cedo teriam que aguardar muitas horas. Chegando lá, entraram na fila e foram até a sua urna despedirem-se dele.

Seguimos rumos diferentes. Eu me casei cedo e enquanto acalentava um filho na madrugada, ela espalhava panfletos pelas “Diretas já”. Levantava-se antes de o dia clarear para ocultar-se nas suas sombras. Enquanto eu me envolvia com os inúmeros afazeres de uma dona de casa, ela tentava driblar a polícia que impedia qualquer forma de manifestação. Estava sempre no meio das concentrações, das greves. Sabia que dentro de sua sala de aula havia informantes infiltrados e tinha cautela até para conversar.

Pessoas conscientes da realidade como esta minha amiga passam por muitas decepções, pois não conseguem sentir a tranquilidade em que vivem os alienados. Ela sempre foi assim: questiona tudo, vê tudo e se revolta com certas coisas. Na última eleição disse-me que era a última vez que votaria e, se novamente cometesse engano, anularia o voto nas próximas eleições.

Confesso que sinto saudades em ver em seus olhos o brilho do idealismo, o espírito de luta, a disposição para ser uma pequena célula transformadora. Hoje ela tem muito pouco daquela amiga revolucionária. Os culpados por acabarem com o idealismo de minha amiga estão no poder, destruindo outras esperanças.

Ao terminar esse texto, me vi cantarolando baixinho aquela canção de Cazuza: “Ideologia... eu quero uma pra viver...”

Déa Miranda
Enviado por Déa Miranda em 30/07/2012
Código do texto: T3805551
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