Os 7 bairros da Cia. do Céu
Os 7 bairros da Cia. do Céu
- Fui avisado muito em cima da hora – protestei em voz baixa, e no meu íntimo desejava que as coisas fossem diferentes.
Ela fingiu não ouvir e prosseguiu.
- Você já tem a lista com os nomes e os endereços. Torno a avisar, não use telefones de qualquer espécie e muito menos internet. Fale com cada um da lista pessoalmente. Para cada nome há uma informação chave. Quando você a disser, o interlocutor deverá saber do que se trata.
- Muito em cima da hora... – insisti, num tom que reunia lamento e indignação.
- Dê o seu melhor – frisou ela, e sem mais nenhuma palavra desapareceu do outro lado do guichê.
As pessoas atrás de mim reclamaram da demora e que os serviços estão cada vez mais relapsos. Um grandalhão de camisa listrada comentou para mim:
- E aí, tiozinho, todo esse tempo para carregar o bilhete?
Sorri amarelo e subi a escada rolante.
Primeiro bairro, Vila Mariana. Desci no terminal, tomei um café e, pelo fato de estar mais ou menos familiarizado com o território, tracei mentalmente o trajeto e pus-me a caminho.
- Poderia chamar o sr. Wagner, por favor?
A menina de aparelho nos dentes, cabelos oxigenados, com diversas pinturas sobre a pele dos ombros e dos braços e trajando vestes no mínimo dois números menores que as medidas originais de seu corpo, decorava as unhas enquanto falava no celular. Ela demorou uma enormidade para dizer:
- Ah...Ele está ali, tá vendo? É aquele alto.
Atravessei a rua e me apresentei. O homem pediu licença aos outros e andou comigo pela calçada uns poucos metros.
- Pois não? – disse ele com um ar de dúvida na fronte.
Falei na lata:
- No século 14 estávamos vivendo na Idade das Trevas e a nossa afinidade com as artes e a cultura era praticamente inexistente.
Ele permaneceu estático por alguns segundos, fechou e abriu os olhos, então disse:
- A fim de estimular o nosso cérebro direito criativo, a Companhia do Céu projetou a sabedoria das artes. Enquanto este conhecimento sagrado se infiltrava nos corações e mentes conscientes da Humanidade, o Renascimento nasceu em Florença, Itália.
Chequei a sua fala no meu caderninho e depois lhe dei um papel muito parecido com uma entrada de cinema, que continha os números que ele precisava saber.
- Oh, estou sem óculos, pode me dizer quando começa o congresso?
- Dia primeiro – respondi – depois de amanhã.
Ele agradeceu com um sorriso cordial e antes que eu partisse comentou alguma coisa como “esperava outra pessoa”. Quase que eu disse, “eu também”, mas optei por uma saída menos cáustica.
- Sempre me dizem isso – falei, simulando um bom humor inexistente.
Bairro dois, Paulicéia, São Bernardo do Campo. Só eu sei a chatice que foi chegar até aqui. Ela pegou o papel das minhas mãos e explicou:
- Não são bairros, a Companhia do Céu não funciona assim.
Dei de ombros, expressando que para mim tanto faz, apenas coloquei desse modo para mapear a minha cabeça. Devo ir ainda a vários lugares.
Ela me desejou boa sorte e foi cuidar de seus afazeres. Começo a duvidar da minha competência em terminar esse serviço hoje.
Tive um treinamento prévio (e básico) para cuidar dessa empreita – me ater a ordem exposta na lista e falar o menos possível. A lista é desprovida de sentido e às vezes acontece das pessoas, por um motivo qualquer, falarem além da conta.
O número 3 está estabelecido no Campo Belo, percebo uma mega empresa, pelo menos a fachada assim transmite, e quando digo o nome do indivíduo com quem preciso tratar um mar de seguranças, secretárias, assessores e ante salas se abriu diante de mim. Me oferecem suco de laranja e bolo.
Rumino que, em certas etapas da vida, tudo o que precisamos baseia-se em dois dedos de atenção, digo, da parte de terceiros. Algo como “olá, como vão as coisas? Me lembrei de você hoje...”.
O homem não tarda a aparecer, tem um inequívoco aperto de mão e mostra o caminho de um pequeno corredor que termina numa ampla sala envidraçada.
Mesmo sem convite eu me sento, abro meu caderninho e lhe passo a informação chave:
- O que estão chamando de bóson, bóson de Higgs é, de fato, um tipo de ímã que atrai certas partículas de energia pra entrar na matéria, pra formar a realidade física.
Fecho o caderno e respiro fundo, então fecho os olhos, penso que talvez uma nova receita de óculos seja uma boa idéia.
Ele permanece de pé, do alto dos seus um metro e oitenta e tantos e com um sorriso diz que também precisa checar anotações, devido ao tamanho da sua resposta.
“Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu”, cantarolou a canção, dentro da minha cabeça.
Ele resolveu sentar e uma vez empertigado declamou sua fala:
- O que vai acontecer com esse grande pronunciamento sobre essa partícula – ela é realmente um elemento...hã...ah sim, alguém vai perceber que na verdade ela não está funcionando de acordo com o método científico. Eles viram funcionar por um tempo, e agora não está funcionando. O que eles vão fazer? Ficar de boca calada, se forem espertos e quiserem manter seu emprego! (Ele riu um pouco consigo mesmo e deu continuidade). Então, o que vai acontecer é que eles vão... De repente, os princípios científicos que eles estavam usando e os modelos padrão em que estavam se baseando subitamente não vão funcionar. Vai realmente deixá-los abalados. Vai fazer com que alguns fiquem loucos, porque pensam demais nisso, e não deviam. Mas eles vão perceber que ela não funciona do mesmo jeito todas as vezes. E, para uma validação científica, precisa funcionar, mas não vai, porque, primeiramente, não estão considerando isso para cada elemento, cada energia, cada partícula, cada tudo – com uma pequena exceção – que tem sua contraparte, sua sombra que existe numa esfera diferente. Não vêm juntos, na maior parte, pra mesma esfera. Então, se há esse bóson de Higgs, digamos, nesta esfera que eles podem identificar, eles não estão vendo a outra metade – seu lado escuro, seu lado na sombra ou seu oposto. Não “escuro” no sentido de “mau”. Esse outro trabalha o tempo inteiro. Às vezes, é uma força oposta, às vezes, é complementar, mas precisa haver esse outro, na maioria das vezes, e eles não o estão vendo.
Ele se dirigiu a cabeceira da grande mesa onde estávamos instalados para atender uma chamada e eu já separara o canhotinho, que lembra uma entrada de teatro, para lhe entregar.
O Campo Belo me parece um bairro agradável, pensei, olhando as cercanias através desta vasta janela.
- O Congresso será no Havaí – comentou o homem de modo retórico.
- Começa depois de amanhã – retifiquei, pois assim fora instruído. Ele aquiesceu e continuou:
- As Ilhas do Havaí são remanescentes do continente da Lemúria. O impulso inicial da queda da Graça da Humanidade ocorreu na Lemúria há eons. A Ilha de Kauai é conhecida como Ilha Jardim. Esta Ilha contém em seus registros o Conceito Imaculado, ou o Projeto Divino para o corpo da Mãe Terra. Desde então, todo o trabalho da Cia. do Céu pode ser sintetizado como, digamos, uma espécie de resgate. Você entende?
- Sim – menti, pensando que hoje, tudo o que eu quero desta Companhia é uma pizza gigante de mussarela e uma cópia decente do filme “Bullitt”. Ah, e alguém para conversar sobre ele.
O homem fez questão de me conduzir até a entrada da empresa, e quando demos no pequeno jardim antes da rua ele indagou pelo Jair, motorista.
- Para onde você vai agora? – indagou.
- Vila Cruzeiro – respondi, como um robô subitamente acometido de um feitiço benigno.
Fomos então, eu e o Jair, para a quarta etapa, um salão de cabeleireiro, tratar com a dona Dirce.
Nao se pode dizer que Campo Belo e Vila Cruzeiro sejam bairros vizinhos, mas esse trajeto feito de automóvel transcende as angústias de qualquer trânsfuga.
Jair puxa assunto pelo ponto comum de toda conversa que se ouve hoje por aí – a violência. Ele me contou que ontem de manhã incendiaram dois ônibus no bairro dele. Pombas, certos canais de televisão contam de um Brasil, digamos, fictício.
Dona Dirce estava na porta, fumando um cigarro. Mesmo sem nunca tê-la visto, eu tinha certeza de que era ela. Já lhe aconteceu isso, sentir uma certeza vinda do nada?
A praxe com ela foi de uma simplicidade desconcertante. Eu deveria dizer (e disse):
- Os vampiros são imortais porque...
E ela deveria responder (e respondeu):
- Porque não dão nada, só tiram. A morte é uma doação.
Mais um nome riscado no caderninho.
A vinda até aqui, apesar de agradável, durou quase 30 minutos, tempo de sobra para conversas, revelações e conclusões. Jair indagou que trabalho era esse e eu lhe disse que era um bico, que vira na seção de classificados de um jornal de bairro o anúncio: “Promotores para o 26º Congresso Anual Mundial da Iluminação”.
- Vai ser aqui em São Paulo esse congresso?
- Ilha de Kauai, Havaí, de 1 a 16 de agosto.
- Quanto vão te pagar, ou já te pagaram? Enrolação não deve ser, porque, para chegar no meu patrão...
- O nome tava na lista. Já pagaram, duas diárias de pesquisador, dá quase 80 reais, e eu ainda concorro a uma cesta básica e uma cadeira de escritório. Para mim seria melhor se eu terminasse isso hoje, tinha outros planos para amanhã.
Paramos num entroncamento cheio de caminhões, Jair pediu para ver os bairros, viu, deu risada, perguntou se era tudo jogo rápido que nem havia sido com a dona Dirce, com 80 por cento de certeza eu lhe disse “sim” e foi então que ele propôs:
- Me dá a cesta básica que eu te levo nos três. Que engraçado. É tudo aqui do lado, um seguido do outro. Jardim Hípico, Jardim Marajoara e Cidade Monções. Que engraçado. Há mais de 20 anos que a prefeitura não utiliza esse nome.
Três e meia da tarde, ruminei, se tudo der certo chego em casa em torno das 5. Bem, as coisas se encaixam, já aconteceu isso com você? Ótimo, então somos dois. Vejamos o próximo – Epaminondas, uma sapataria na esquina das ruas xis e ípsilon. Eu deverei dizer para ele:
- Dormir é natural. Foi projetado dessa forma. Sonhos são naturais. No momento, estamos existindo numa dúzia ou mais de sonhos.
E ele deverá dizer para mim:
- Adormecer, para os humanos, deveria ser a coisa mais assustadora do mundo. Por quê? Porque abrem mão do controle...
(Imagem: Laura Rowe)
Os 7 bairros da Cia. do Céu
- Fui avisado muito em cima da hora – protestei em voz baixa, e no meu íntimo desejava que as coisas fossem diferentes.
Ela fingiu não ouvir e prosseguiu.
- Você já tem a lista com os nomes e os endereços. Torno a avisar, não use telefones de qualquer espécie e muito menos internet. Fale com cada um da lista pessoalmente. Para cada nome há uma informação chave. Quando você a disser, o interlocutor deverá saber do que se trata.
- Muito em cima da hora... – insisti, num tom que reunia lamento e indignação.
- Dê o seu melhor – frisou ela, e sem mais nenhuma palavra desapareceu do outro lado do guichê.
As pessoas atrás de mim reclamaram da demora e que os serviços estão cada vez mais relapsos. Um grandalhão de camisa listrada comentou para mim:
- E aí, tiozinho, todo esse tempo para carregar o bilhete?
Sorri amarelo e subi a escada rolante.
Primeiro bairro, Vila Mariana. Desci no terminal, tomei um café e, pelo fato de estar mais ou menos familiarizado com o território, tracei mentalmente o trajeto e pus-me a caminho.
- Poderia chamar o sr. Wagner, por favor?
A menina de aparelho nos dentes, cabelos oxigenados, com diversas pinturas sobre a pele dos ombros e dos braços e trajando vestes no mínimo dois números menores que as medidas originais de seu corpo, decorava as unhas enquanto falava no celular. Ela demorou uma enormidade para dizer:
- Ah...Ele está ali, tá vendo? É aquele alto.
Atravessei a rua e me apresentei. O homem pediu licença aos outros e andou comigo pela calçada uns poucos metros.
- Pois não? – disse ele com um ar de dúvida na fronte.
Falei na lata:
- No século 14 estávamos vivendo na Idade das Trevas e a nossa afinidade com as artes e a cultura era praticamente inexistente.
Ele permaneceu estático por alguns segundos, fechou e abriu os olhos, então disse:
- A fim de estimular o nosso cérebro direito criativo, a Companhia do Céu projetou a sabedoria das artes. Enquanto este conhecimento sagrado se infiltrava nos corações e mentes conscientes da Humanidade, o Renascimento nasceu em Florença, Itália.
Chequei a sua fala no meu caderninho e depois lhe dei um papel muito parecido com uma entrada de cinema, que continha os números que ele precisava saber.
- Oh, estou sem óculos, pode me dizer quando começa o congresso?
- Dia primeiro – respondi – depois de amanhã.
Ele agradeceu com um sorriso cordial e antes que eu partisse comentou alguma coisa como “esperava outra pessoa”. Quase que eu disse, “eu também”, mas optei por uma saída menos cáustica.
- Sempre me dizem isso – falei, simulando um bom humor inexistente.
Bairro dois, Paulicéia, São Bernardo do Campo. Só eu sei a chatice que foi chegar até aqui. Ela pegou o papel das minhas mãos e explicou:
- Não são bairros, a Companhia do Céu não funciona assim.
Dei de ombros, expressando que para mim tanto faz, apenas coloquei desse modo para mapear a minha cabeça. Devo ir ainda a vários lugares.
Ela me desejou boa sorte e foi cuidar de seus afazeres. Começo a duvidar da minha competência em terminar esse serviço hoje.
Tive um treinamento prévio (e básico) para cuidar dessa empreita – me ater a ordem exposta na lista e falar o menos possível. A lista é desprovida de sentido e às vezes acontece das pessoas, por um motivo qualquer, falarem além da conta.
O número 3 está estabelecido no Campo Belo, percebo uma mega empresa, pelo menos a fachada assim transmite, e quando digo o nome do indivíduo com quem preciso tratar um mar de seguranças, secretárias, assessores e ante salas se abriu diante de mim. Me oferecem suco de laranja e bolo.
Rumino que, em certas etapas da vida, tudo o que precisamos baseia-se em dois dedos de atenção, digo, da parte de terceiros. Algo como “olá, como vão as coisas? Me lembrei de você hoje...”.
O homem não tarda a aparecer, tem um inequívoco aperto de mão e mostra o caminho de um pequeno corredor que termina numa ampla sala envidraçada.
Mesmo sem convite eu me sento, abro meu caderninho e lhe passo a informação chave:
- O que estão chamando de bóson, bóson de Higgs é, de fato, um tipo de ímã que atrai certas partículas de energia pra entrar na matéria, pra formar a realidade física.
Fecho o caderno e respiro fundo, então fecho os olhos, penso que talvez uma nova receita de óculos seja uma boa idéia.
Ele permanece de pé, do alto dos seus um metro e oitenta e tantos e com um sorriso diz que também precisa checar anotações, devido ao tamanho da sua resposta.
“Tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu”, cantarolou a canção, dentro da minha cabeça.
Ele resolveu sentar e uma vez empertigado declamou sua fala:
- O que vai acontecer com esse grande pronunciamento sobre essa partícula – ela é realmente um elemento...hã...ah sim, alguém vai perceber que na verdade ela não está funcionando de acordo com o método científico. Eles viram funcionar por um tempo, e agora não está funcionando. O que eles vão fazer? Ficar de boca calada, se forem espertos e quiserem manter seu emprego! (Ele riu um pouco consigo mesmo e deu continuidade). Então, o que vai acontecer é que eles vão... De repente, os princípios científicos que eles estavam usando e os modelos padrão em que estavam se baseando subitamente não vão funcionar. Vai realmente deixá-los abalados. Vai fazer com que alguns fiquem loucos, porque pensam demais nisso, e não deviam. Mas eles vão perceber que ela não funciona do mesmo jeito todas as vezes. E, para uma validação científica, precisa funcionar, mas não vai, porque, primeiramente, não estão considerando isso para cada elemento, cada energia, cada partícula, cada tudo – com uma pequena exceção – que tem sua contraparte, sua sombra que existe numa esfera diferente. Não vêm juntos, na maior parte, pra mesma esfera. Então, se há esse bóson de Higgs, digamos, nesta esfera que eles podem identificar, eles não estão vendo a outra metade – seu lado escuro, seu lado na sombra ou seu oposto. Não “escuro” no sentido de “mau”. Esse outro trabalha o tempo inteiro. Às vezes, é uma força oposta, às vezes, é complementar, mas precisa haver esse outro, na maioria das vezes, e eles não o estão vendo.
Ele se dirigiu a cabeceira da grande mesa onde estávamos instalados para atender uma chamada e eu já separara o canhotinho, que lembra uma entrada de teatro, para lhe entregar.
O Campo Belo me parece um bairro agradável, pensei, olhando as cercanias através desta vasta janela.
- O Congresso será no Havaí – comentou o homem de modo retórico.
- Começa depois de amanhã – retifiquei, pois assim fora instruído. Ele aquiesceu e continuou:
- As Ilhas do Havaí são remanescentes do continente da Lemúria. O impulso inicial da queda da Graça da Humanidade ocorreu na Lemúria há eons. A Ilha de Kauai é conhecida como Ilha Jardim. Esta Ilha contém em seus registros o Conceito Imaculado, ou o Projeto Divino para o corpo da Mãe Terra. Desde então, todo o trabalho da Cia. do Céu pode ser sintetizado como, digamos, uma espécie de resgate. Você entende?
- Sim – menti, pensando que hoje, tudo o que eu quero desta Companhia é uma pizza gigante de mussarela e uma cópia decente do filme “Bullitt”. Ah, e alguém para conversar sobre ele.
O homem fez questão de me conduzir até a entrada da empresa, e quando demos no pequeno jardim antes da rua ele indagou pelo Jair, motorista.
- Para onde você vai agora? – indagou.
- Vila Cruzeiro – respondi, como um robô subitamente acometido de um feitiço benigno.
Fomos então, eu e o Jair, para a quarta etapa, um salão de cabeleireiro, tratar com a dona Dirce.
Nao se pode dizer que Campo Belo e Vila Cruzeiro sejam bairros vizinhos, mas esse trajeto feito de automóvel transcende as angústias de qualquer trânsfuga.
Jair puxa assunto pelo ponto comum de toda conversa que se ouve hoje por aí – a violência. Ele me contou que ontem de manhã incendiaram dois ônibus no bairro dele. Pombas, certos canais de televisão contam de um Brasil, digamos, fictício.
Dona Dirce estava na porta, fumando um cigarro. Mesmo sem nunca tê-la visto, eu tinha certeza de que era ela. Já lhe aconteceu isso, sentir uma certeza vinda do nada?
A praxe com ela foi de uma simplicidade desconcertante. Eu deveria dizer (e disse):
- Os vampiros são imortais porque...
E ela deveria responder (e respondeu):
- Porque não dão nada, só tiram. A morte é uma doação.
Mais um nome riscado no caderninho.
A vinda até aqui, apesar de agradável, durou quase 30 minutos, tempo de sobra para conversas, revelações e conclusões. Jair indagou que trabalho era esse e eu lhe disse que era um bico, que vira na seção de classificados de um jornal de bairro o anúncio: “Promotores para o 26º Congresso Anual Mundial da Iluminação”.
- Vai ser aqui em São Paulo esse congresso?
- Ilha de Kauai, Havaí, de 1 a 16 de agosto.
- Quanto vão te pagar, ou já te pagaram? Enrolação não deve ser, porque, para chegar no meu patrão...
- O nome tava na lista. Já pagaram, duas diárias de pesquisador, dá quase 80 reais, e eu ainda concorro a uma cesta básica e uma cadeira de escritório. Para mim seria melhor se eu terminasse isso hoje, tinha outros planos para amanhã.
Paramos num entroncamento cheio de caminhões, Jair pediu para ver os bairros, viu, deu risada, perguntou se era tudo jogo rápido que nem havia sido com a dona Dirce, com 80 por cento de certeza eu lhe disse “sim” e foi então que ele propôs:
- Me dá a cesta básica que eu te levo nos três. Que engraçado. É tudo aqui do lado, um seguido do outro. Jardim Hípico, Jardim Marajoara e Cidade Monções. Que engraçado. Há mais de 20 anos que a prefeitura não utiliza esse nome.
Três e meia da tarde, ruminei, se tudo der certo chego em casa em torno das 5. Bem, as coisas se encaixam, já aconteceu isso com você? Ótimo, então somos dois. Vejamos o próximo – Epaminondas, uma sapataria na esquina das ruas xis e ípsilon. Eu deverei dizer para ele:
- Dormir é natural. Foi projetado dessa forma. Sonhos são naturais. No momento, estamos existindo numa dúzia ou mais de sonhos.
E ele deverá dizer para mim:
- Adormecer, para os humanos, deveria ser a coisa mais assustadora do mundo. Por quê? Porque abrem mão do controle...
(Imagem: Laura Rowe)