UM "ANJO DE PRETO"
Ao leitor, trago a presente crônica com muita emoção:
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No horizonte translúcido da pequena cidade montanhosa a tarde caía bela e luminosa a delinear seu lusco-fusco por detrás da araucárias que, em perfeita perspectiva espacial, tangenciavam alguns picos ainda ao alcance dos nossos olhos.
Lá no palco da pracinha um violino se destacava num solo clássico como a responder aos lamentos da camerata que orquestrava na arte a vida e a natureza do lugar, enquanto os transeuntes, turistas temporários das calçadas, se distraíam com o burburinho do momento.
Vez ou outra o sino da igreja contablizava as tantas metades das plenas horas já idas, tão despercebidamente, enquanto num voo raso um sabiá também gorjeava como se encantado com a música; e assim o todo da natureza exuberante se confundia com o "marcato" ritmo das partituras que transcendem a beleza e os mistérios das "notas" da vida.
De fato, parecia um milagre, aquele momento de tanta paz a ecoar pelos muros surdos e turbulentos do atual Planeta Terra, atualmente em perene clima de inverno.
Todavia, mesmo nos momentos de pleno lazer, a vida não pára nunca , e sequer tanta paz e beleza ofuscariam nossos olhos à luta diária que se exterioriza pelo cenário do seu difícil sustento.
Assim, num flash da vida real, ali dentre as entrelinhas do fluxo das grifes e dos autómóveis de surreal luxo, também nos era possível visualizarmos a triste antítese de alguns pedintes discretamente espalhados por pontos estratégicos, como nas entradas das chocolaterias, dos restaurantes e da porta da Igreja de São Benedito.
Afinal, cena de palco nada mais pertinente dentre toda a nossa tão grande e maquiada injustiça social: São Benedito é o padroeiro da boa cozinha e de seus cozinheiros, e justamente ali, na porta da sua morada,seria inadmissível que alguém sofresse fome, ainda que a vida transcenda todas as lógicas.
Mais que justo, portanto, que algumas fomes sempre ancorem no lugar exato a estenderem suas mãos tão vazias a espera dum novo milagre, nem que seja pelo trivial duma moedinha a tilintar a cada próximo badalar do sino da torre.
E as teatralizações da vida não parariam por ali.
Alguns artistas da mímica já são reconhecidos em vários pontos turísticos do planeta a encenarem suas estátuas vivas, perfeitamente paralisadas, todavia de corações pulsantes, personagens vários de todas as artes realísticas da vida, palhaços vindos dos circos tristes com milagrosos sorrisos largos, anjos "de branco" vindos dos céus escuros , heróis "napoleões" das guerras mundanas da vida, piratas corruptos dos mares antigos, e tantos outros personagens dos velhos contos das fadas, mas que nos inspiram até hoje, todos sempre expectantes por um melhor final feliz.
E foi dentre eles tantos que eu o avistei.
Ele, um artista mirim talvez duns treze anos de vida, que poderia sim ter optado por um palco mais rápido de pseudo sustento, o dos cenários comuns da nossa infância tão abandonada: as já instituídas calçadas da drogadição ou da criminalidade infantis sem controle, negligentemente espalhadas entre nós por todos os cantos.
Mas não,a sua genialidade sensorial lhe proporcionaria uma ideia mais digna, um outro caminho heróico e artístico que tanto me sensibilizou: não importaria o personagem que ele ali representaria, ao menos seria qualquer "estátua viva", aos olhos do mundo cego que ali desfilasse.
Então se virou com o que tinha: tracejou a face com raios de tinta escura e munido de dois sacos pretos, desses que empacotam grande quantidade de lixo, se personificou em algo que a princípio, no impacto que sofri, não consegui distinguir muito bem.
Ali, ele então se plantou hermeticamente com a mão esquerda ansiosamente estendida para algumas suplicadas moedas.
Imediatamente senti que me seria impossível não escrever.
Às vezes, só depois dum tempo , tomamos consciência da triste realidade que nos envolve, ainda que seja apenas nas letras.
Ao meu "Anjo de Preto", então, aqui rendo minha sincera homenagem, num ardente desejo de que, um dia, quem sabe algum milagre lhe permita que seu céu lhe ascenda ao brilhante nascer de sol dentre as belas montanhas da sua cidade.
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