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O dia está lindo. Nem sinal da frente fria anunciada. Lá fora, no bambuzal que fica do outro lado da rua, os bambus produzem um som de teclas de antigas máquinas de escrever quando agitados pelo vento.

Meus sinos de vento ecoam seus variados sons pela casa. Cachorrinhos latem ao longe, passarinhos, macaquinhos e esquilos... a mesma paisagem bucólica de sempre. Lá na rua, acredito que algumas pessoas estejam aproveitando para fazer uma caminhada antes do almoço.

Estou escrevendo sobre a mesa da sala de jantar, e na minha frente, uma jarra de barro que trouxemos quando visitamos a Ilha de Marajó. As lembranças que trago de lá? Touros mansos, imensos, argolas enfiadas nos narizes negros, transportando cargas e pessoas. Não tem consciência da própria força. Se desejassem, derrubariam toda a ilha, e dominariam sobre ela. Obrigados a puxar toneladas sob um calor escaldante, sob o qual eu mesma mal aguentava andar. Também tomamos uma carroça puxada por um daqueles animais, ao desembarcarmos do aviãozinho que nos deixou na ilha.

Também me lembro da barca para Soure, o rio turvo, mosquitos... lembro-me da praia de areias escuras e tristes. Calor, calor, calor... uma pensão cheia de araras soltas. Na época em que fomos lá, havia apenas três táxis na ilha toda. Todo o transporte era feito através dos imensos animais submissos.

Não sei porquê, achei a ilha um lugar triste e desolado.  Não gostaria de voltar lá, a não ser que fosse para libertar todos os touros, deixando-os livres pelha ilha.

Minha mãe uma vez me contou uma história muito triste. Ela tinha uma amiga que tinha uma casa na Praia de Mauá, e elas sempre iam para lá nos finais de semana. O lugar é quente e abafado. Um dia, minha mãe viu quando um cachorrinho muito magro se aproximava delas, andando pela beiradinha de uma rua de barro, sob um sol tremendamente quente. De repente, ele tombou, e quando elas chegaram perto dele, viram que estava morto. Morreu de sede, provavelmente.

Enquanto escrevo, uma abençoada brisa fresca entra pela janela escancarada. Minhas janelas sempre estão abertas, mesmo nas noites frias eu deixo uma gretinha. Dizem que o ar viciado faz mal à saúde, e eu acho que tenho um pouco de claustrofobia. Fico apavorada quando tenho que ficar em ambientes totalmente fechados, e acho que foi por isso que não gostei de Brasília. Tudo escuro e acarpetado, poucas janelas...

Uma vez, eu estava pronta para entrar com meus alunos para uma aula, e aguardava o outro professor sair. Era inverno. Quando ele abriu a porta da sala de aula, saindo seguido por um grupo de dez adolescentes, o ar estava irrespirável! Ele tinha ficado o tempo todo com as janelas totalmente fechadas. Quando reclamei, ele disse: "Smells like teen spirits!" Apesar de gostar do Nirvana, entrei na sala de aula seguida por meus alunos e escancarei as janelas.

Às vezes, aqui em casa, preciso lembrar-me de fechar um pouco as janelas quando meus alunos entram. Acontece de só me dar conta quando os vejo encolhidinhos, quase tiritando de frio.

Nossa... fico pensando naqueles trens que levavam judeus durante a Segunda Guerra... todos espremidos dentro de um vagão sem ventilação, escuro, sem lugar para sentar, e algumas vezes, sem poderem sequer abaixar os braços. Quilômetros e quilômetros... nunca entendi essa mania dos humanos acharem que algumas pessoas são inferiores e merecem ser eliminadas. Mas apesar da guerra ter acabado, ainda vemos isso o tempo todo por aí.

Preciso começar o dia. Estou aqui, disfarçando esta necessidade. Tem muitas coisas que precisam ser feitas nesta casa. Em mim. Melhor começar.

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Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 26/07/2012
Reeditado em 26/07/2012
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