A fábula das palavras

Uma vez as palavras foram roubadas do mundo, e ninguém sabia o autor de tal façanha. Não só a palavra escrita foi retirada da humanidade, mas toda forma de se fazer entender foi também usurpada, o mínimo gesto, um sutil olhar ou um discreto raspar de garganta, nada mais restava. Engana-se quem ache que as pessoas acharam ruim o desaparecimento das palavras, ocorreu o contrário, elas acharam bom. Inicialmente até houve um estranhamento, mas com o tempo as pessoas perceberam os benefícios. Não era preciso ficar inventando assunto com o vizinho enquanto se esperava o elevador ou com algum estranho nas filas. Nada de chegar ao serviço e sair cumprimentando todos os colegas naquele ritual chato de boas relações.

No aconchego do lar a convivência ficou ainda melhor, os filhos não precisavam mais ficar ouvindo as ladainhas dos pais, sempre censurando e regulando todas as suas atitudes. Já os pais, esses se sentiam bem mais sossegados por não ter de ouvir os filhos pedindo tudo a toda hora. Foi realmente um sonho realizado, nada de ouvir sermão de marido ou de esposa por chegar tarde do serviço, e o melhor de tudo, nem mesmo aquele pungente olhar de reprovação.

Sem promessas de políticos ou mendigos pedindo esmola, nada de taxistas falando em nossos ouvidos durante uma corrida. Aliás, era difícil pegar um taxi nesses dias tão estranhos, assim como era difícil comprar um pãozinho, uma roupa comer em algum restaurante. Mas o ser humano é extremamente adaptável a todos as adversidades, e acabaram dando um jeito nas inconveniências causadas pela falta de comunicação. Cada um fazia o que queria, não havia por que esperar aprovações, reprovação ou conselhos de outros. O mundo sem palavras era como ter a casa só para nós.

Com o tempo a vida seguiu normalmente, cada um vivendo em seu mundo. As pessoas trombavam umas nas outras, já que não havia como pedir licença, caiam, levantavam-se e seguiam em frente sem pedir desculpas. Se um bom samaritano ajudava tacitamente seu próximo, literalmente não havia palavras para agradecer, os dois continuavam seus caminhos e nem um olhar era trocado. Quando havia um atropelamento, o que era comum, pois sem sinalização a preferência é de todos, o motorista prosseguia sem prestar socorro. Não havia razão para ficar no local, uma vez que não era possível dizer palavras de conforto para o agonizante atropelado ou prestar esclarecimento do ocorrido para as autoridades, que se tornaram totalmente ausentes.

Eu me regozijei juntamente com todos os amantes do novo estilo de vida. Como eles me vi livre de todas as coisas ruins que a convivência com o outro pode trazer, formalidades, aqueles companhias desagradáveis que tínhamos de suportar. Mas com o tempo, essa silenciosa babel gerou um vazio em mim. Era impossível saber se as outras pessoas também sentiam o mesmo, porém, aos meus olhos, cada uma estava sozinha em meio a tantos outros solitários companheiros. Eu andava pelas ruas e era como se contemplasse uma galeria composta de obras de Edward Hopper. Cada bar, cada casa e cada esquina era a expressão viva das telas do pintor, tudo era um convite à solidão. Senti falta de meus amigos, familiares e das boas prosas que tínhamos. Ligar para eles estava fora de cogitação, visitar muito menos, não havia assunto, ou melhor, não havia como manifestar assunto, então eu preferia ficar em casa e cuidar dos meus afazeres.

Certo dia, perdido em meus pensamentos, felizmente a introspecção ainda era possível, ouvi passos na entrada da minha casa. Um simples “toc toc” na porta é uma forma de se comunicar, logo o misterioso visitante se limitou a ficar parada do lado de fora. Continuei deitado no sofá, embora eu estivesse me sentindo solitário, não fazia sentido receber visitas, mas a pessoa foi insistente e continuou na porta.

Levantei-me e fui atender o inconveniente visitante, qual não foi a minha surpresa quando me deparei com minha filha parada me encarando. Tomado por uma imensa felicidade, abri um largo sorriso ao mesmo tempo em que dizia, sem sentir, em alto e bom tom “bom dia minha filha”, ela certamente se surpreendeu com minhas palavras e sorrindo respondeu, surpresa com suas próprias palavras, “vim te ver pai”. Os silenciosos transeuntes, que ouviram nossa troca de cumprimentos, começaram a cochichar entre eles. Estavam estarrecidos pela nossa capacidade de comunicação, sem se darem conta de que eles mesmos se comunicavam naquele exato momento. “As palavras foram devolvidas” gritavam alguns, quando perceberam o glorioso fato, enquanto outros simplesmente cantarolavam frases desconexas sem parar.

Assim, as palavras voltaram para a humanidade, e através do boca a boca todas as pessoas souberam da novidade, não ficou ninguém sem saber, pois todos faziam questão de contar para os outros. Com o tempo, após minuciosa investigação, descobriram que as palavras não haviam sido roubadas, as pessoas que haviam perdido, paulatinamente, o hábito de manifesta-las. Quando elas finalmente faltaram, ninguém fez o menor esforço para recuperá-las, por gostarem do fato ou simplesmente por estarem atarefadas demais para se preocupar com besteiras. Ao fim, foi erguido em cada cidade um monumento em honra às palavras, e cravado na pedra que servia de base havia os seguintes dizeres:

“Sem as palavras eis que me encontro ilhado, caminhando lado a lado com multidões de outros náufragos, sem, porém, preencher o vazio, a solidão, a angústia por não poder me comunicar."

Parabéns a todos os escritores que têm nas palavras a matéria-prima para sua arte.

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 25/07/2012
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T3796776
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