Quando me torno europeu

Sou um brasileiro típico. Não tem o que colocar nem tirar. Não gosto de carnaval, não me embebedo nos fins de semana e nem passo o rodo na mulherada; mas apesar de não estar adequado ao estereótipo afirmo com toda a propriedade minha brasileiridade. Meu sobrenome testifica isso.

Os Dornelles eram uma família de portugueses que se instalaram no interior da província de São Pedro, lá pelas bandas de Alegrete. Depois da abolição da escravidão os negros alforriados precisaram ser formalmente registrados. Como não havia uma linhagem preservada, para facilitar o processo os escravos simplesmente adotaram o sobrenome da família ao qual pertenciam. Era um ultraje para qualquer europeu ter o mesmo nome de um negro, então depois de usar, abusar e humilhar os descendentes da realeza africana eles desferiram o golpe de misericórdia: mudaram um pequeno detalhe no sobrenome. No meu caso se tirou uma letra. Assim os portugueses eram Dornelles e os negros Dorneles, com um L.

Eu sou Dorneles. E com muito orgulho. Além dos escravos tenho um pezinho nas tribos indígenas. Mais recentemente meu pai incorporou cromossomos arianos em meu DNA. A conclusão é que sou um verdadeiro brasileiro: uma mistureba étnica ambulante.

Sou bem resolvido em relação a minha nacionalidade. Diferente de alguns que choram por não terem nascido em alguma parte da Europa. Pensando bem: muita gente chora por não ter nascido na Europa. Chamo isto de nostalgia genética.

É impossível especificar dados, mas é inquestionável o fato de que todo brasileiro já sonhou com a Europa. Todos. Inclusive eu. Seja com a possibilidade de um futuro melhor - hoje nem tanto com as crises que o velho continente tem vivido - ou com o simples fato de ser mais "conceituado" nascer europeu. Nosso velho preconceito de cada dia.

Desde sempre na história do Brasil a Europa foi o sonho a ser alcançado. É só você ler alguma obra literária do século 18 que constatará que os costumes da alta sociedade eram ditados no outro lado do mundo. Os jovens ansiavam por se aventurar além mar. Experimentar o luxo, a cultura e a independência europeia.

Hoje não é diferente. Qualquer mulher sonha conhecer a França, seu romantismo artístico e sua arrogância natural. Qualquer homem sonha conhecer a Espanha, o Santiago Bernabeu e a opulência das dançarinas de flamenco. Qualquer adolescente deseja - desesperadamente, diga-se de passagem - conhecer a Holanda e o paraíso artificial de sua capital, Amsterdã. Qualquer senhorinha gostaria de conhecer a Itália e aproveitar para rezar pelo falecido marido em alguma igreja histórica.

Os cromossomos azuis sempre querem prevalecer sobre os proletariados. Disfarçamos nossa homogeneização cultural tentando nos europeizar. A prova mais consistente disso acontece no inverno. Principalmente no sul, região mais fria e com maior colonização europeia.

Ofendemos nossos antepassados índios quando negamos sua influência e agimos como verdadeiros europeus: cabulamos o banho.

Quem nunca ficou sem tomar banho por causa do frio que atire a primeira pedra. Ei, rapaz! Solte esta pedra porque é feio mentir.

O brasileiro é o cidadão que mais toma banho no mundo. O calor característico da região e o fácil acesso à água proporcionaram esta prática. Primeiro os índios, depois os europeus e agora esta tradição continua com nós. Exceto naqueles dias de encarangar cusco velho.

Junho, Julho e Agosto são os meses que verdadeiramente assumimos nosso lado europeu. Ninguém toma banho. Ao menos não como no resto do ano.

O normal é dois banhos por dia, certo? Um ao acordar antes de ir ao trabalho e outro quando no fim do dia quando se chega em casa. Algumas vezes até acontece um terceiro antes de dormir dependendo do clima. No inverno por estas bandas um banho a cada dois dias está de bom tamanho.

Imagine você acordando, bem aquecido em baixo do edredom, confortável e tranquilo. Antes mesmo de abrir os olhos você já percebe que seu nariz e suas orelhas estão congelados. É quase um parto tirar um braço das cobertas, Levantar, então. O despertador precisa tocar meia hora antes para você ir levantando gradualmente. Membro por membro precisa ser exposto à temperatura real do ambiente: primeiro um braço, depois outro, depois a ponta do pé e assim sucessivamente.

Imaginou? Certo. Agora imagine seu corpo limpo e quente entrando debaixo de um chuveiro mais inconstante que alguém bipolar.

Bem capaz! Nem a pau! O máximo que você faria era molhar o cabelo para facilitar seu penteado e dar aquele ar de banho tomado. Para completar seu desempenho como europeu passaria um perfume básico.

No caso das mulheres é pior. De jeito nenhum elas admitirão que ficam sem tomar banho. Vão argumentar que sempre se banham, mas nem sempre lavam o cabelo. Questão de estética. Aí eu me pergunto: banho é banho sem lavar o cabelo? A primeira parte do corpo a ser molhada e lavada é a cabeça; ou seja, parte fundamental para a sensação de limpeza. De que vale lavar o corpo inteiro e deixar as madeixas oleosas e cheias de sujeira acumulada no couro cabeludo? Coisa de europeu. Coisa de mulher.

Lembre-se sempre agora, quando bater aquela vontade de conhecer ou voltar ao velho continente deixe seus instintos falarem mais alto: não tome banho e se sinta um verdadeiro europeu.

Eduardo Dorneles
Enviado por Eduardo Dorneles em 25/07/2012
Reeditado em 25/07/2012
Código do texto: T3796660
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