De graça sem ser pirata

A minha maior aspiração com o salário que receberia no primeiro emprego estava ligado diretamente com as futilidades que meu pai não bancava.

Quadrinhos, por exemplo. Não precisava me conter com uma edição por mês. Poderia comprar todas que quisesse. Pensava assim até começar a trabalhar. Depois de um suado mês de serviços em uma livraria onde eu podia ler todos os gibis de graça durante meu intervalo, repensei onde investir meu salário.

Qual seria a outra opção para montar uma coleção? Fácil. Minha outra paixão: os filmes. Comprei meus primeiros DVDs. A trilogia do "Homem-Aranha" do Sam Raimi e a clássica comédia dos anos 80 "Curtindo a vida adoidado" do John Hughes.

De lá para cá não parei mais. Adquiri um número relevante de verdadeiras obras de arte da história do cinema. Chaplin, Kubrick, Cameron, Fincher, Nolan, entre outros.

Um detalhe importante: todos originais. Nenhum veio das banquinhas do centro.

Tenho asco à pirataria. A prova das raízes motivacionais de alguém que diz apreciar arte se manifesta neste ponto. Não gosto de ser taxativo, pois na vida nada é fixo, tudo é circunstancial e cada caso é um caso. Mas nisto é fato que quem adquire obras artísticas como músicas e filmes de uma forma ilegal não é digno de usufruir do duro trabalho realizado pelos autores.

A arte como a vida não é um ciclo fechado. Todo aquele que tem acesso ao conteúdo criado continua a desenvolvê-lo. O artista concebe, mas a vida desta obra só começa quando sua imagem é absorvida pelas retinas ou ouvidos do público. A interpretação cabe a cada um. Um admirador sabe disso e respeita esta verdade, como também reconhece o crédito que o autor possui. Não só com aplauso, mas com o valor que a experiência que ele lhe proporcionou merece.

Quem opta pela pirataria é ingrato com o artista, infiel com a arte e não merece ser considerado colaborador da obra.

Mas e os preços salgados? Como fazer para ter cultura se tudo é tão caro? Concordo em parte. Para qualquer coisa que você irá investir o sacrifício será necessário.

Por isso criei uma estratégia onde consigo ler o que quero, não gasto um centavo e não preciso baixar nada pela internet: leio os livros na livraria.

Entro, perambulo uns instantes, dispenso o vendedor e enfim vou ao lugar que se localiza o título que quero. Sabia onde ele estava desde o início. Fiz todo aquele trajeto para disfarçar e atestar que não seria incomodado por nenhum outro atendente. Com o livro em mãos leio o prefácio e os dois primeiros capítulos ainda de pé. Olho para os lados para ver se não estão de bico em mim; se não, aproveito para me sentar nas poltronas que ficam espalhadas pela livraria e mando bala.

Desta maneira li toda a graphic novel "Asterios Polyp" do David Mazzucchelli, um livro de contos do Machado de Assis e de crônicas do Charles Bukowski.

Atualmente estou lendo "O Eterno Marido" do Dostoiévski. A demora se deve ao pouco tempo que estou dispondo para ficar horas a fio na livraria. A média tem sido um capítulo por dia.

Este truque só funciona nas livrarias de shoppings. Nas livrarias de rua corro o risco de ser expulso. Além do fato de que as livrarias de shopping são maiores e atendem mais clientes; logo tenho mais liberdade.

O único problema são os seguranças. O que os atendentes têm de desligados, eles possuem de atenção. Todos me conhecem. Nunca falaram nada. Afinal, além de ler alguma coisa por lá mesmo também gasto muito. Mas que é chato é chato. Dou uma olhada de canto e lá está o segurança engravatado fingindo que está organizando a prateleira. A vontade é sacar da minha carteira meu cartão de fidelidade, esfregá-lo em seu rosto e esbravejar:

- Pare de olhar com essa cara, como se fosse roubar alguma coisa! Sou cliente da loja há muito tempo! Posso pegar de graça qualquer coisa aqui com os pontos que tenho acumulados!

Nunca falei isso. Mas que dá vontade, ah! isso dá.

Eduardo Dorneles
Enviado por Eduardo Dorneles em 23/07/2012
Reeditado em 23/07/2012
Código do texto: T3793120
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