Transporte público
Tenho usado transporte público há três anos, ou melhor, usei sempre desde a minha infância, pois meu pai não teve carro, nem minha mãe, e nenhum dos meus irmãos teve ou têm carro até hoje. Passei um tempo sem usar transporte público, quase esqueci como eram até o dia que vendi meu carro para pagar uma dívida.
Usar transporte público é uma experiência diária, diferente todos os dias. Distintos também seus modelos – tamanhos, velocidade, preços, pessoas e portas. Cada porta que abre para entrarmos em um transporte coletivo é um conhecimento a mais. Têm diversas portas, a porta da tristeza, a porta do desespero, a porta do inusitado, a porta da alegria, a porta surpresa, a porta da miséria, a porta da poesia, a porta dos doces, da violência, da paquera, do reencontro, entre outras portas.
O ônibus chega, entro fardado, geralmente, pela porta detrás. A porta do dia se abre. Hoje a porta do desespero. Algumas mulheres com crianças de colo, carinhas de doente estão indo para o hospital. São mães preocupadas, cansadas e prestes a enfrentarem as filas do hospital público, pois quem usa transporte público também usa hospital público. O ônibus que pego passa em frente ao hospital e as crianças e idosos doentes estão a caminho das filas, das injeções de desânimo e do medo das epidemias de estresse no tratamento diário. Nos ônibus, pais com filhinhos nos colos são mais raros, não uma cena inexistente, mas a paternidade e ônibus parece nota de três.
A porta do dia seguinte é a porta da alegria. Um homem velhinho, com maquiagem que não disfarça suas rugas usa máscara de feliz. A performance é teatral. Ele vende pirulitos pouco chamativos, mas chama atenção sua explicação – “sou o palhaço Banzé e vim para adoçar a vida de vocês”. Em um ônibus é assim, as pessoas não riem, não fazem muita graça. Parece que todos estão a caminho da solidão. Do palhaço fica a impressão do sofrimento físico e moral e o pirulito não adoça mesmo a vida de ninguém. Dó ou compaixão tomam conta do clima e o palhaço que ri nunca me convence, vende alguns pirulitos e sai. Depois que sai olho sua cabeça baixa, como mais um cidadão em busca da sobrevivência. Seus sorrisos ficaram insossos na minha mente, ou melhor, sem alimento doce para as esperanças do dia.
Mais uma porta. Desta vez, o metrô. Com aspecto moderno da desumanidade, ele é cruel. No metrô abrem-se portas surpresas. Cada dia algo novo, um amigo que não vemos há muito, um abarrotado de pessoas desconhecidas, uma figura religiosa gritando com desculpa de restituir a graça divina de alguém. No metrô existem regras particulares. Não se olha nos olhos de alguém mais que 1s. Não se senta no chão, não se liga som, não se come, não se senta nos lugares preferenciais a idosos, pessoas com deficiência ou pessoas com crianças de colo, ou melhor, mulheres com crianças de colo ou grávidas. A regra do sentar é a única respeitada.
O tempo vai passando e o metrô ficando lotado. Outra regra interessante é que mulheres podem esfregar em nós homens, mas um homem jamais pode encostar qualquer parte do corpo numa mulher, mesmo sem querer. Correm-se riscos naturalizados e machistas de supostos assédios, mas... A rotina do metrô demonstra um automatismo em que as pessoas são como peças mecânicas na engrenagem - entra, sai, senta, levanta e faz fila - para usarem as escadas enrolantes que, muitas vezes, não funcionam. As diversas portas abrem as surpresas diárias.
As portas da violência denunciam a falta de respeito constante. Violência como assaltos, brigas, xingamento, racismo, homofobia, violação dos direitos de pessoas idosas e com deficiência são constantes. Abrem-se todos os dias as portas da violência física ou psicológica. Supõe-se que são inerentes ao uso dos transportes públicos aqui.
Várias portas e experiências, às vezes, interessantes. A porta da sorte também se abre e no universo dinâmico da vida sobre essas rodas podem surgir paqueras, reencontros, amizades e expressões de cidadania. Como tudo está mesclado, podemos encontrar muitas pessoas educadas e cientes do processo de algum progresso. É preciso ter fé.
Algum dia você também se depara com a porta da poesia. Bebês muitos novinhos parecem sonhar no colo da mãe com olhar de todo amor materno. O cansaço vira uma súplica, uma oração pelo instante humilde e delicado, ao som do pensamento chuva ou olhar pôr de sol. Alguma prece e doces velhinhas rezam o terço. As delicadas mãos, as veias e rugas, peles vividas e cansadas perecem o tempo. A espera parece menos longa e o transporte público nos entrega ao caminho da finitude.
A porta da poesia carece da ingratidão da alma. Serenidade assim é rara, nessa situação, no entanto é possível ver fantasias nas sombras, pesar puro no enfado e, algumas vezes, o sossego do vento e a marca no rosto de trabalhadores sensatos. A atmosfera roda sobre a roda. A atmosfera é o clima ponderado de conversas populares. Ditados aparecem, falácias curiosas, aflição e calamidade. Parece que tudo pára sem parar. Pelo menos ali, onde a única coisa que nos resta é permanecer quietos.
A porta dos doces vem de todos os lugares. Uma vez encontrei um velhinho de mais ou menos 80 anos vendendo balas. O vi perdido, sem tido, ou ido, ou sem nenhum sentido mesmo. Sem tido chance de estar em uma situação melhor ou ido ao encontro da felicidade. Parecia miséria, mas não era. Parecia dor e no caminho mais prece. Ouvinte, quieto, cansado, história real. Suas pernas tremiam. Tanto anos caminhados, caminhos trilhados, curvas, voltas, idas e agora ali – no meu ônibus. Engraçado como o transporte é público, mas todo mundo chama de meu. São nossos problemas que se resolvem. Sempre falo que ruim não é o ônibus e sim a parada, muito mais solitária e perigosa, principalmente à noite – sem exagero, às vezes, desesperador ficar ali, quando o ônibus não passa.
Outro dia abriu a porta da surpresa. Uma pessoa que eu atendi estava no ônibus. Vou descer, pensei – psicólogo andando de ônibus em Brasília – e o pior, em direção a periferia. Que nada! Àquela hora eu me choquei com o próprio preconceito, com a ‘autocrendice’ viciada, corrompida pelo medo de ofender – melindre. Que escrúpulo tenho a oferecer? Fiquei sem graça. A porta da vergonha ensinou-me a aceitar, e lembrar-me do que peço todo dia – riqueza de espírito. Assim, o transporte público veio me ensinar. Aprender com a vida e a humildade em minha alma transportar.
Saldo final: lugares que não pude ir, noites que não pude na cidade sozinho andar, pressa em chegar. Saldo final: pessoas que conheci, loiras bonitas que fitei, crianças que segurei para não caírem no chão.
Ajustes de conta individual: gasolina que não gastei, borracha de pneu e óleo que não queimei, solidão que, às vezes não passei. Desvantagens: alguns atrasos, vontade de sentar no chão, calor, barulho e todos os riscos que já falei. Vantagens: o mundo ganharia mais. Muitas vezes, por não dirigir cochilei, li, escrevi e até sonhei.
Resultado: trabalhei normalmente, estudei, namorei e até me diverti. Conheci novos caminhos. Aprendi e conversei com pessoas que nunca vi. Li livros inteiros, vi paisagens possíveis apenas pelo ângulo desse tipo de visão. Observei grupos de alunos, de senhoras, de sindicatos, de policiais, de jovens e lógico de mulheres de uniformes de comissária. Mais resultados: andei mais a pé, calorias queimei, pus fone de ouvido, falei ao celular sem trazer risco no trânsito a ninguém. Observei moda, comi amendoins, dei esmolas e ofereci meu lugar para pessoas mais velhas. Ouvi conversas engraçadas, vi situações inusitadas e cheguei. Sempre cheguei.
Cheguei a me odiar por voltar a depender de transporte público outra vez. Aqui onde moro falta muito para melhorar, mas me perdoei. Hoje, não tenho mais nenhuma timidez e, se for preciso, corro até 100m pro ônibus parar. Abriram-se várias portas, outras fecharam. Fui, voltei, mas nunca cheguei o mesmo. Cansado, no outro dia ao me levantar ia pensando – que portas hoje abrirei?