Baiano e os Novos Caetanos
Ygor da Silva Coelho
O dia amanhece em Salvador. O sol ainda não se apresenta na manhã sombria. Moro no alto de Brotas e de lá olho pela janela, a cidade é sempre linda, mesmo com as nuvens pesadas. O mar está revolto, e certamente também revoltado com as chuvas que caem no litoral e faltam no sertão. Agricultores de 228 cidades do interior, em estado de emergência, aguardam as chuvas e 100 mil turistas, em Salvador, torcem pelo sol! A vida é assim, cheia de paradoxos.
Mas faça sol ou faça chuva, Salvador é mesmo linda! Será que o viver no lugar tão belo explica o soteropolitano ser tão descontraído e festeiro? Greves, caos no trânsito, alagamentos, nada faz parar a música. Não tarda e começo a ouvir os tambores dos alunos da Escola de música Pracatum e da Timbalada, que ficam próximas. Aprecio o verde do Horto Florestal, os pássaros cantam, voam entre mangueiras e cajazeiras de uma mata atlântica que já foi mais densa e afastam, definitivamente, o meu mau humor matinal.
Momentos depois o sol já aparece tímido e faz brilhar os espigões mais altos: o Vale de Loire, Le Méridien, no Rio Vermelho, a casa suntuosa do político, circundada por uma imensa piscina, feita provavelmente com o nosso dinheiro. Impressiono-me com a casa e os olhos saltam para o outro lado do vale, a favela do Nordeste de Amaralina. Contraste maior não pode existir!
Paro com minhas reflexões, pois tenho que sair. Imagino o engarrafamento, que já não têm hora nem local para ocorrer. As tarefas do dia me obrigarão a peregrinar por cartórios. Penso e planejo um roteiro. Só baiano tem o privilégio de escolher ficar parado no trânsito junto ao Farol da Barra, no Corredor da Vitória ou na Avenida Contorno, apreciando a Baía de Todos os Santos, o vaivém dos barcos e a ilha de Itaparica.
Ainda no bairro de Ondina, praticamente no início do meu percurso, um conserto no asfalto (coisa rara hoje em dia!) já trava o trânsito. Não poderiam fazer isto à noite? Pergunto sem obter resposta. Enquanto xingo o prefeito e os péssimos administradores que assumiram a minha Bahia nos últimos anos, o cheiro mágico de acarajé invade o meu carro.
Acarajé para mim é como um “entorpecente”, um Cannabis sativa ou sei lá o quê... Subtrai qualquer depressão. Por acaso já viu alguém de mau humor, ou irritado, em torno de uma baiana de acarajé? Eu nunca vi. Estaciono o carro, encosto na baiana e peço um acarajé, com vatapá e camarão. A descontraída conversa da bonita baiana com uma cliente sobre o último cortejo da Lavagem do Bonfim vem como bônus.
Retorno ao carro, o radio toca Baiano e os Novos Caetanos, numa homenagem a Chico Anysio, recém falecido: “A chuva passa, passou / e vem a lua molhada / e a sanfona danada / e nós vivendo de amor...”. Interpreto como um recado para mim. O negócio é ficar zen, deixar fluir, com o fluir da vida. E eu já nem sei se chego ao cartório antes do meio dia...
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Nota: Esta crônica é dedicada à minha professora Maria Isabel Fernandes Chitarra, da ESAL/UFLA. Pernambucana autêntica, mineira de coração, brasileira de alma baiana.
Ygor da Silva Coelho
O dia amanhece em Salvador. O sol ainda não se apresenta na manhã sombria. Moro no alto de Brotas e de lá olho pela janela, a cidade é sempre linda, mesmo com as nuvens pesadas. O mar está revolto, e certamente também revoltado com as chuvas que caem no litoral e faltam no sertão. Agricultores de 228 cidades do interior, em estado de emergência, aguardam as chuvas e 100 mil turistas, em Salvador, torcem pelo sol! A vida é assim, cheia de paradoxos.
Mas faça sol ou faça chuva, Salvador é mesmo linda! Será que o viver no lugar tão belo explica o soteropolitano ser tão descontraído e festeiro? Greves, caos no trânsito, alagamentos, nada faz parar a música. Não tarda e começo a ouvir os tambores dos alunos da Escola de música Pracatum e da Timbalada, que ficam próximas. Aprecio o verde do Horto Florestal, os pássaros cantam, voam entre mangueiras e cajazeiras de uma mata atlântica que já foi mais densa e afastam, definitivamente, o meu mau humor matinal.
Momentos depois o sol já aparece tímido e faz brilhar os espigões mais altos: o Vale de Loire, Le Méridien, no Rio Vermelho, a casa suntuosa do político, circundada por uma imensa piscina, feita provavelmente com o nosso dinheiro. Impressiono-me com a casa e os olhos saltam para o outro lado do vale, a favela do Nordeste de Amaralina. Contraste maior não pode existir!
Paro com minhas reflexões, pois tenho que sair. Imagino o engarrafamento, que já não têm hora nem local para ocorrer. As tarefas do dia me obrigarão a peregrinar por cartórios. Penso e planejo um roteiro. Só baiano tem o privilégio de escolher ficar parado no trânsito junto ao Farol da Barra, no Corredor da Vitória ou na Avenida Contorno, apreciando a Baía de Todos os Santos, o vaivém dos barcos e a ilha de Itaparica.
Ainda no bairro de Ondina, praticamente no início do meu percurso, um conserto no asfalto (coisa rara hoje em dia!) já trava o trânsito. Não poderiam fazer isto à noite? Pergunto sem obter resposta. Enquanto xingo o prefeito e os péssimos administradores que assumiram a minha Bahia nos últimos anos, o cheiro mágico de acarajé invade o meu carro.
Acarajé para mim é como um “entorpecente”, um Cannabis sativa ou sei lá o quê... Subtrai qualquer depressão. Por acaso já viu alguém de mau humor, ou irritado, em torno de uma baiana de acarajé? Eu nunca vi. Estaciono o carro, encosto na baiana e peço um acarajé, com vatapá e camarão. A descontraída conversa da bonita baiana com uma cliente sobre o último cortejo da Lavagem do Bonfim vem como bônus.
Retorno ao carro, o radio toca Baiano e os Novos Caetanos, numa homenagem a Chico Anysio, recém falecido: “A chuva passa, passou / e vem a lua molhada / e a sanfona danada / e nós vivendo de amor...”. Interpreto como um recado para mim. O negócio é ficar zen, deixar fluir, com o fluir da vida. E eu já nem sei se chego ao cartório antes do meio dia...
Nota: Esta crônica é dedicada à minha professora Maria Isabel Fernandes Chitarra, da ESAL/UFLA. Pernambucana autêntica, mineira de coração, brasileira de alma baiana.