Um caso de saúde pública 


A filha de um vizinho aqui do prédio veio pedir-me umas aulas sobre colocação dos pronomes oblíquos átonos. Despachei-a para a ex-mulher, mais atualizada com o assunto. Próclise, mesóclise e ênclise são coisas que me ocorrem ao sabor da escrita, praticamente de ouvido, e não saberia preparar ninguém para uma prova ou concurso público. Eu mesmo entrei na onda e juntei-me à garota de treze anos para aprender mais um pouco. 

No intuito de criar um certo clima, Betinha começou sua explicação narrando a curiosa tragédia do Sr. Ataliba. Quem, entre os mais velhos, não se recorda desse saboroso relato de antologia escolar do antigo ginásio? A história de um setuagenário vaidoso de sua longa barba à D. Pedro II, cheio de saúde, que toda noite, antes de voltar para casa, compartilhava uma cerveja preta com seus parceiros de copo e sueca num barzinho de esquina. Viúvo sem maiores preocupações, com uma vida exemplar em sua pequena cidade natal, onde era conhecido de todos e nunca fora visto doente nem desprovido daquele farto bom humor que era a sua marca registrada. 

Uma noite, porém, um dos colegas do boteco, olhando com inusitada estranheza para ele, fez a pergunta que mudaria para sempre o dia-a-dia desse homem tranqüilo como um boi sem febre aftosa: 

“Ataliba, na hora de dormir você coloca a barba por dentro ou por fora da coberta?” 

Rindo muito, o simpático viúvo pensou um pouco e respondeu que nunca tinha reparado naquilo, mas que no dia seguinte lhe traria a resposta. 

Ao deitar-se, naquela noite, o Sr. Ataliba lembrou-se da conversa no bar e, sem dar chance ao bichinho da dúvida, colocou triunfantemente a barba por dentro da coberta. Passado um instante, achou esquisito e experimentou-a por fora. Percebeu que não se sentia muito à vontade assim e tornou a enfiar a barba embaixo da coberta, para logo em seguida retirá-la de novo. Sem decidir-se, um só instante, pela melhor posição, passou sua primeira noite em claro, depois de toda uma existência de sono conciliado nas horas certas. 

E assim ocorreu nos dias seguintes. O pobre homem já não dormia à noite e passava o dia neurastênico e desatento, cochilando onde quer que se encostasse. Tornou-se um velho mal-humorado, de mal com a cidade, e especialmente com esse pilantra sem alma que fizera de sua vida um inferno. 

Lembrei a Betinha que tinha sido assim minha primeira aula no ginásio sobre colocação pronominal, e que na época o destino do infeliz Ataliba deixara-me apavorado. Dir-se-ia (e aqui pisquei um olho para a ex-mulher) que o aprendizado desse tópico gramatical é um verdadeiro caso de saúde pública. 

A filha do meu vizinho é que não achou graça alguma na história, limitando-se a perguntar: 

“Por que esse babaca não raspou logo a barba?” 


[25.9.2005]