Fale mais alto!

Entrei no quarto e lá estava ele, deitado na cama, encolhido e virado para a parede. Gabriel! chamei-o, mas ele não ouviu. Certamente os fones de ouvido que tocavam alguma música de gosto, no mínimo, duvidoso, impediram que me escutasse. Ô, meu! tentei novamente. Aí, sim, ele virou-se para me dar a devida atenção.

- O que aconteceu no colégio? - perguntei.

- Nada, ora. - respondeu prontamente.

Fitei-o e como o conheço desde que estava no ventre de sua mãe não acreditei na resposta. Até porque, quando cheguei minha irmã sugeriu que eu fizesse tal pergunta. Logo, obviamente, algo deveria ter acontecido na escola. Tentei de novo.

- Por que tua mãe teve que ir lá hoje?

- Pra falar com as professoras.

- O que tu fez de errado?

Seu olhar demonstrava um ar de abatimento. Por incrível que pareça, estava constrangido pelo que tinha feito. Um milagre, tratando-se de uma adolescente de quatorze anos.

- Ah! Discuti com uma professora.

- Por quê?

- Ela começou a gritar comigo do nada, me ofender na frente dos outros alunos. Não fiquei quieto. Respondi no mesmo tom. Aí, ela me expulsou da sala e mandou chamar minha mãe.

Apiedei-me com a resposta. Não quero parecer um puxa saco de sobrinho, mas acreditei em seu argumento. Ele estava tendo um ano exemplar. Tinha aumentado sua média em comparação ao ano anterior, não havia queixas disciplinares a seu respeito e até elogios tinha recebido - do professor de educação física, mas já era alguma coisa. Aquele rigor todo era devido a seu currículo negativo. A história de que seu passado te condena foi uma verdade neste momento.

Olhei para ele, ele olhou para mim. Naquele breve momento de silêncio a velha ligação que nos unia falou por si só. Apesar de ele ser meu sobrinho, nossa relação sempre foi de irmãos. Minha irmã engravidou com 16 anos, eu tinha quatro. Lembro que fui o primeiro a saber enquanto assistia ao desenho do Mega-Man no sábado pela manhã. Também fui o responsável de espalhar a notícia para a família. Na verdade não fui eu. Como eu que contei para a minha mãe este fato na presença da tia mais fofoqueira da família, ela tratou de deixar os outros a par. Este foi o início. No decorrer dos anos esta relação apenas estreitou-se.

Vendo-o naquela situação, balancei a cabeça e ri. O coitado estava desorientado. Propus-me a ajudar. Usei de toda a minha experiência em sala de aula para tentar elucidá-lo.

Lembrei de algo que havia acontecido no terceiro ano do ensino médio. Minha professora de português e eu tínhamos ferrenhas discussões sobre seu posicionamento em sala de aula. Era uma mulher que se portava como adolescente. Cobrava atitudes que ela própria não tinha. Não quero vangloriar-me, mas sempre saía como vencedor dos duelos verbais que travávamos. Minhas ideias não eram revolucionárias, meus argumentos não eram inovadores e minha retórica não era avassaladora. Sabe como eu a derrotava? Com a frieza do meu tom de voz.

Uma vez, em meio a ataques e contra ataques, perguntas e respostas, tréplica e quadréplicas (não procure esta palavra no dicionário, por favor) ela, furiosa ao ponto de quase babar, exigiu que eu falasse mais alto. Em perfeita serenidade respondi que não. Meus pais haviam me ensinado que em uma discussão quem grita sempre perde a razão.

Baaaah... Ela se emudeceu, meus colegas aplaudiram e eu venci.

Tenho uma forte tendência a repudiar quem grita enquanto fala. Não me refiro a uma voz firme e imponente, mas aos que fazem questão de erguer o máximo possível para inconscientemente, transmitir a ideia de domínio e superioridade.

Talvez seja por isso que não consigo permanecer muito tempo em meio aos meus familiares. Afinal, um bando de baguais vindos de Alegrete, que disputam com a televisão o título de quem fala mais alto enquanto passam de mão em mão o chimarrão na sala de estar, não poderia resultar em algo diferente.

O que já foi o grande advento da humanidade hoje é apenas algo supérfluo. A habilidade da fala é um dos dons mais magníficos do homem. Infelizmente ele tem sucumbido ao ímpeto animalesco do homo sapiens.

A maneira como a comunicação tem se estabelecido através da internet tem deturpado algo que é tão básico em nossa natureza. Com a informação tão fragmentada, a leitura tornou-se algo pesado, um incômodo, influenciando diretamente o desenvolvimento sadio da língua. Além dos erros de ortografia, o verbo falar tornou-se sinônimo de grunhir.

O maior arrebatador de massas através da oratória da história mundial era manso, simples e falava pausadamente. Jesus Cristo não era, como muitos pensam, um daqueles gritadores que proclamavam a ira divina vindoura. Ele era inteligente, atencioso, um homem de poucas palavras e, principalmente, um excelente ouvidor. As escrituras do Antigo Testamento, que premeditaram seu nascimento, declararam que Ele não gritaria e ninguém ouviria sua voz nas praças e em locais públicos. Isso se confirmou no decorrer dos anos.

Somos livres. A liberdade se caracteriza, hoje, em poder falar tudo que queremos mesmo se for o que os outros não querem ouvir. Precisamos, apenas, aprender a forma adequada de nos comunicarmos: falando e não berrando.

Gabriel ouviu atentamente tudo que havia dito. Concordou e declarou que agiria daquela forma de agora em diante. Que orgulho! Em alguns minutos consegui influenciar positivamente no caráter de meu sobrinho.

Dias depois quando voltei a casa da minha irmã, lá está ele, de novo na cama, virado para a parede, antes das 20 h.

- Que foi Biel?

- Nada.

- Fala, cara.

- Puxa vida! As pessoas não me ouvem mais. Eu tenho tanta coisa para falar, mas ninguém se atenta se eu não gritar como um louco!

- Pois, é... - refleti - Bem vindo ao meu mundo.

Eduardo Dorneles
Enviado por Eduardo Dorneles em 16/07/2012
Reeditado em 16/07/2012
Código do texto: T3781221
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