Gouveia era um homem bom

Quem não conhece o Gouveia da televisão? Suas gratificações criavam um vale de perplexidade na humildade reinante. Ofertava gorjetas tão polpudas que calava os circunstantes. Doava sem pestanejar um frango novinho em folha para o melhor amigo do homem, caso encontrasse algum faminto. Sabia se comover.

Como a propaganda se tornou o melhor amigo dos sonhos do homem, os mendigos permaneciam em fila indiana no portão da mansão do Gouveia. Permaneciam contemplativos, esperando a querida presença iluminada. Fila para recebimento de notas novinhas em folha e com valor que nem sabiam da existência no mercado. O Gouveia e só os Gouveias podiam criar da noite para o dia um hospital, um prédio alto, um abrigo, qualquer coisa que lhes desse na telha. Dois telefonemas e estavam construindo uma gigantesca ponte sobre a propaganda e a realidade nua e crua.

O Gouveia era senhor de todo o desejo. Quem mais se parece com ele senão Deus? Pode embarcar num avião particular e voar até Honolulú após a janta. Naturalmente se formavam filas matinais para ver o Gouveia passando, deixando um rastro de valores.

No fundo todos amam sua munificência, mas ninguém conhece o pobre Gouveia que mora dentro daquela grande alma. Ninguém sabe quem ele é e o que sente além dos números, números que não fornece de graça. Numerários do enorme Gouveia, dono de banco e multimilionário. Ninguém sabe quando o Gouveia sente vontade de chorar porque o dinheiro do universo está ficando no seu cofre, sem saber de quem arrecadar, de quem extrair mais. Das orações que faz para ver suas ações subindo.

Sua monocultura financeira consiste em absorver todo o recurso do universo, ganhar tudo, lucrar cem vezes mais em cada ação dadivosa. Odiar qualquer filosofia que lhe tire as colheitas dobradas. Ninguém sabe desse coitado Gouveia com estabelecimentos espalhados pelo mundo afora, sempre arrecadando, arrecadando, arrecadando. Recolhendo quatro, cinco vezes mais sobre taxas, tarifas e novas expressões que ele cria para engordar e subtrair honestamente.

O mercado da côdea de pão não lhe interessa.

Gouveia conseguiu criar no mundo a máquina para arrecadar dinheiro para si mesmo com esforço insuperável. Para facilitar dinheiro ao Gouveia. Amigo de todos os que possuem somas elevadas, e que como ele, às vezes esbanjam uma gorjetinha em cada esquina. Poupem o Gouveia que sofre, pobre sujeito, lembrando a vida passada dos seus Condes e Duques. Talvez alguém diga: Gouveia você é um homem de verdade! Um homem que ilude os demais com sua imagem de vencedor sobre os enfraquecidos. Um homem que vendeu ao mundo a imagem da prosperidade. Um homem que todos desejam ser, sua vantagem de ilusionista.

Vontade de ser Gouveia por um minuto na sauna todos tem. De recolher muito para resguardar riqueza alheia num planeta cada vez mais sem pecúlio. Gouveia dono de tudo. Gouveia que compra tudo. Gouveia que paga tudo em cada esquina e inventa uma espiritualidade prática. Uma abstração para se convencer de que alguma passagem é impossível comprar. E se redime com simplicidade.

É por isso que ele se dá o luxo de sair distribuindo notas de cem pela rua de cinema das televisões. Televisões que brilham nas janelas das favelas.

Bem que o Gouveia podia jogar dinheiro fora em espaços geográficos bem definidos. Jogar no lixo lá de casa, sorriu o vizinho. Sorriso com vontade de ser Gouveia. Quem não haveria de gostar do acesso livre aos desejos? Fazer “donwloading” de tudo que necessitasse metendo a mão no bolso. Quando passava casualmente pela padaria o pródigo Gouveia adquiria pão francês com setenta reais e jamais pedia troco. Depositava a diferença na caixinha dos infelizes. Que generosidade!

Mesmo com Henfil chorando lágrimas sinceras lá no céu, ficou claro que há mais comida nas propagandas do que na realidade. Há tantos economistas no país, tantos, que é muito estranho tudo ser diferente do mundo do Gouveia. Mas tudo muda muito pouco. Só o Gouveia prossegue, farto, feliz e confortável. Enviar. (Tércio Ricardo – para o Recanto das letras).