O Leiteiro

O homem atravessava a ruazinha de manhã cedo. Um paletó escuro, calça escura, terno cuja cor não se identificava bem devido ao nevoeiro. A camisa branca, a gravata afrouxada, o rosto por barbear, cabelo meio despenteado. 38 ou 45 anos no máximo. Caminhava calmamente, ora ereto, ora curvando-se, mas não estava bêbado. Porque atravessava em linha reta. Mantinha sob o braço uma garrafa que podia ser de whisky, de cachaça ou água mineral. Não dava pra ver direito. Talvez ele se curvasse de vez em quando para favorecer o equilíbrio.

Depois de atravessar, podiam-se perceber algumas folhas no bolso do paletó. Caminhava sem pressa, despreocupado, como fazem os que voltam pra casa após uma noitada num dancing ou boate, uma noite de amor, ou uma mesa de pôquer, onde o resultado foi favorável.

Não precisava olhar pra ninguém porque àquela hora não se via ninguém na ruazinha. Somente o olhar do leiteiro o acompanhava de longe. Era uma figura estranha na vizinhança. Pouco conhecida, pois quase nunca aparecia. E de quem pouca coisa sabiam. O leiteiro estava tendo a sorte de o encontrar agora, quando não tinha ainda iniciado a distribuição das suas garrafas de leite. Mas era preciso iniciar o trabalho.

O leiteiro notou de repente que o homem do terno escuro sucumbiu ao oferecimento do banquinho do Marko 25. Fechado àquela hora, o Marko 25 era um bar, a dois degraus da calçada da ruazinha, sob uma marquise que abrigava até à lateral da entrada do bar um banquinho de madeira com espaço para três pessoas. Era um banco aconchegante em que nunca se encontrava lugar durante o dia. Nele agora, só o homem e o sereno, que parecia não o preocupar. O leiteiro viu quando o homem retirou do bolso o maço de folhas, colocou a garrafa ao seu lado e iniciou a leitura. Era um cara mesmo estranho. Lendo na rua àquela hora, sentado no banquinho do Marko 25! Se estava indo pra casa, por que não foi ler em casa? Eu, hein! Vou começar pela Gertrudes.

O leiteiro deixou o seu primeiro litro de leite do dia na varanda da casa 75. Depois foi para a casa 53. O seu Horácio quer três litros. Família grande. Quando saiu da entradinha recuada do seu Horácio, o leiteiro percebeu que o homem do terno escuro já havia ido embora. A garrafa tinha ido com ele, mas o maço de folhas não.

Tinha idéia de onde ele morava. Era só pegar as folhas e perguntar a alguém o endereço exato do homem. Que desaparecera. Deve estar andando mais rapidamente agora. No entanto, o primeiro ímpeto foi o de saber o que aquelas folhas continham.

“Em 1937 o Departamento de Estado americano via o fascismo com uma reação natural, um espécie de auto-defesa, dos ricos e das classes médias. E sustentava que em qualquer parte do mundo o nazismo e o fascismo deviam prevalecer, ou então as massas, com o reforço de classes médias desiludidas, iriam de novo voltar para a esquerda”.

“Também por volta de 1937, Hitler foi elogiado por um emissário da Inglaterra à Alemanha por ter bloqueado a expansão do comunismo”.

“A Itália fascista era a preferida dos investidores, e importantes corporações americanas tiveram grande envolvimento com a produção bélica nazista, obtendo lucros expressivos ao se juntarem ao programa de arianização de Hitler”.

- Ah, então é assim: quando a coisa é do meu interesse, eu defendo o que não presta. Quando não, eu condeno. Agora entendi.

Após ler os três primeiros parágrafos datilografados e depois o que parecia ser um comentário por escrito, talvez do homem de terno escuro, o leiteiro sentiu-se confuso. Não entendeu nada. Percebeu apenas que tais escritos nada tinham a ver com ele. E nada diziam sobre o homem. O cara deve ser maluco. Falando sobre coisas que devem ser passadas. Ou ultrapassadas. O que será arianização? Será que a professora Guiomar me explica, a da casa 15? Lá são dois litros. E eu quero lá saber de alguma coisa?

O leiteiro resolveu deixar as folhas no banco. Sabia que ninguém mexeria. No máximo, entregariam-nas no bar, quando ele abrisse. Voltando então para onde havia parado, reiniciou a distribuição dos seus litros de leite.

Rio, 15/07/2012

(fundamentação: livro “World Orders Old and New", de Noam Chomsky)

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 15/07/2012
Reeditado em 16/07/2012
Código do texto: T3778661
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