O idiota da estória
Não faço ideia de que dia era, não me lembro se quer o mês, mas me lembro que estava esperando a hora de pegar a vã escolar pra voltar à minha cidade. Enquanto isso eu bebia umas e outras com um amigo meu, num bar, numa praça em frente a uma faculdade de uma cidade vizinha. Devia ser por volta das dez da noite.
De repente ele aparece; um desses moradores de rua, muito sujo e meio embriagado, porém muito amigável e de bem com a vida. Chegou cantando um blues, acho que era Janis Joplin. Apertamos as mãos assim que ele se aproximou de mim. Ele estava acompanhado de uma vira-lata que era uma gracinha, muito bem cuidada e muito mais limpa que ele. O nome da cadela era Pretinha.
Em meio a frases desconexas, que é característica dos alcoólatras, ele me pediu um gole de cerveja. Pedi que ele sentasse conosco que eu pediria um copo pra ele, ou se preferisse poderia beber no meu se fosse só um gole, mas ele disse que não queria atrapalhar, e que preferia que eu colocasse a cerveja na garrafinha plástica dele que então ele sairia e nos deixaria em paz.
Sempre gostei de conversar com essas pessoas sofridas. Elas sempre tem coisas incríveis pra contar. Enquanto enchia a garrafa do sujeito, a conversa fluía. Arranquei dele fantásticas estórias. E meu amigo observava a conversa admirado, mas não falava nada. Por fim, ele me agradeceu pela cerveja, novamente apertou minha mão, e saiu brincando com a Pretinha ao passo que cantarolava “blow in the wind” com sua voz rouca e pouco afinada. Sentou-se num banco, debaixo de uma enorme gameleira pra saciar a sede de álcool.
Voltei então a dar atenção ao meu parceiro de bar e também a observar as garotas que passavam. Todas lindas e bem trajadas, indiferentes ao nosso mundo.
Pouco tempo se passou até que surgiu na praça um daqueles tipos playboy, todo malhado, ostentando uma camisa e um tênis da Nike, impecáveis. Aqueles que andam desfilando, com ar de superioridade infindável. Aquele tipo imbecil de cara fechada, prepotente, que você reconhece de longe. Aqueles cujo a cara parece sempre estar a procura de uma briga. Ele trazia puxado na coleira um filhote de pastor alemão. Vinha em direção ao mendigo bêbado.
Pretinha, a cadelinha do mendigo, logo foi em direção ao cachorrinho do playboy, e o mendigo disparou atrás dela pra tentar contê-la. Logo imaginei o desfecho da estória. Aquele sujeito metido iria esnobar o coitado e a cachorra também. Cheguei a imaginá-lo chutando a Pretinha. Eu não estava afim de ver isso. Não gosto de ver atitude de pessoas idiotas, que carregam preconceito estampado no peito, como era o caso daquele playboy de olhos arrogantes. Eu tinha certeza disso. Toda certeza do mundo.
Me levantei no ato e fui até o banheiro pra não ter que presenciar a cena. Me demorei la um tempo programado. Saindo do banheiro passei no balcão, pedi a saideira. Enrolei mais um pouco. Por fim, quando imaginei que tudo já tinha se ajeitado, me direcionei à minha mesa devagar com a garrafa na mão. Quando calibrei meus olhos procurando o mendigo e a cachorrinha, ou talvez eu tivesse buscando o playboy ordinário, sei lá, meus olhos travaram numa cena. Congelei. Arrepiei. Eu não sabia o que sentia diante daquilo que vi. Quanto mais perto eu chegava, mais ódio eu sentia. Ódio. Isso era o que eu sentia. Nunca vai sair da minha cabeça aquela imagem, o mendigo espalhado no chão. O playboy ao seu lado. Ódio... Os dois lado a lado. Sentados no chão. Riam e se divertiam com as peripécias de seus cães que brincavam um com o outro daquele jeito amável que os cachorros brincam. Dividiam uma cerveja. Volta e meia puxavam em dueto o refrão de algum rock qualquer. Pareciam velhos amigos.
Ódio. Ódio de mim. Eu que sempre acreditei que não fosse um preconceituoso, tive que engolir o amargo gosto da vergonha. Pois aquele “playboy idiota”, no fim das contas era um ser humano normal como outro qualquer, apesar da cara fechada, as roupas de marca e a pose de burgues. E sobrou pra mim carregar o fardo de idiota dessa estória.