Um Trilho na vida da Gente

Vivo à beira dos barrancos, erosão de saudade dos trilhos vazios da Bahia e Minas! Guardo com um sentido de dor alegre,

um aperto que sobe do peito e tem marcado meu olhar nesses tempos. Devagar...

Baixando a mira para um chão bem pisado de vida .

A foto da primeira locomotiva da estrada! À lenha, bem lembrado!

Do maquinista que passava pela Estação Mangalô, fazenda dos meus avós

soava três vezes o badalo de seu Moacir ,chefe da Estação, rei do telégrafo sem fio.

Contrariava as regras do Ministério dos Transportes que determinava duas badaladas para o "oral de cima" e uma só para o "oral de baixo".

Ficava todo mundo feliz, se qualquer dos "oral" passasse

no horário, ainda que fosse do dia anterior. Ou do te rem que vinha de qualquer lado

O "oral de cima "vinha de Ponta de Areiae o "oral de baixo" vinha das

bandas de Teófilo Otoni.

Então descíamos a ladeira correndo para o maquinista do trem. Ele trazia coisas estranhas como certa vez , ma jaguatirica que meu avô comprou e me deu!Eutinha oito anos .

Glória maior nunca tive!

Nem casamento, paixão consumada ou títulos da vida adulta jamais me cobriram de tanta cheísse de mim mesma.

Sonhava que era nomínimo, uma heroína saída de um gibi,

com uma onça amiga que me protegia

como se fosse Jane de Tarzan ou ela, minha súdita.

Fora a reverência e inveja, das outras crianças!

Aos domingos era dia de briga de facão

entre Torquato e Nego Pego na venda

da Estação.Uma disputa que deve continuar no céu ,

já que ambos foram para

lá cumprir o resto de suas sinas e

tomar a cachaça que tanto ofereceram

aos Santos.

Se o trem "descarrilava", ou um dos maquinistas

dizia estar faltando lenha,

meu avô mandava matar um boi ,

minha avó trazia corotes de leite, biscoito de goma e o largo da Estação

virava um circo mambembe improvisado.

Fazia-se uma fogueira ,pois ali o trem passaria a noite .

O ponto alto da festa era quando Nego Pêgo bebia o sangue do boi ainda quente , logo após ro sacrifício do bicho - churrasco.

Maria Pêgo rezava o ofício de Nossa Senhora, misturado com um alguma

"inscelença" fúnebre, para nosso desespero:a reza era interminável e carecia do gasto dos joelhos pregados na terra pois se levantássemos antes do término, a Virgem Maria nunca mais se levantaria por nós, chorando entre os anjos

Tia Dora cantava Sonhos de Guarapari.

Toquato, negro , um metro e noventa de altura

, riscava o chão com o facão

para não ficar pra trás.

Sebastião Lulu, lobisomem

constatado e aprovado e cartorial,

em noites de lua cheia

,vinha não se sabe de onde,

para nosso prazer e terror infantis.

E bebia ,

bebia muito , nos ameaçando velada e sadicamente.

A Bahia e Minas foi extinta logo depois

pelo governo Castelo Branco.

Até hoje, quando vejo algum documentário sobre ecologia ,

preservação da

mata Atlântica e aparece uma jaguatirica,

ficam irremediavelmente ligados

a onça pintada, a fogueira na estação,

casos de assombração e muita ,muita

felicidade, daquelas quase inconfessáveis.

Daquelas que dão cócegas no

peito, quase pecaminosas.

É... como dizia o Sérgio Porto:"o trem tá atrasado ou já passou"

Beijos,