O INFERNO; DE VOLTAIRE.

"Desde que os homens começaram a viver em sociedade devem ter percebido que não poucos criminosos escapavam á severidade das leis. Puniam-se os crimes públicos: restava estabelecer um freio para os crimes secretos. Só a religião poderia ser esse freio. Persas, caldeus, egípcios, gregos, imaginaram castigos depois da morte. De todos os povos antigos que conhecemos foram os judeus os únicos que não admitiam senão castigos temporais. Ridículo é crer ou fingir crer, baseando-se em passos obscuríssimos, que as antigas leis judaicas aceitavam a existência do inferno, no Levítico como no Decálogo, quando o autor de tais leis não diz uma única palavra que possa ter a menor relação com os castigos da vida futura. Ter-se-ia direito de dizer ao redator do Pentateuco: “Sois um homem inconseqüente, sem probidade e falto de senso, inteiramente indigno do nome de legislador que vos arrogais. Como conheceis um dogma tão altamente refreador, tão necessário ao povo como é o do inferno, e não o anunciastes expressamente? Enquanto o admitem todas as nações que vos cercam, contentai-vos em deixar adivinhar este dogma por comentaristas que virão quatro mil anos depois de vós e que torcerão vossas palavras para encontrar o que não dissestes? Se, conhecendo esse dogma, dele não fizestes a base da vossa religião, ou sois um ignorante que não sabia ser essa crença universal no Egito, Caldéia e Pérsia, ou sois um homem pessimamente avisado”.

Quando muito podiam ou autores das leis judaicas responder: “De fato somos muito ignorantes. De fato aprendemos a escrever demasiadamente tarde. De fato nosso povo era uma horda selvagem e bárbara que, confessamos, errou perto de meio século por ínvios desertos. De fato usurpamos um diminuto país pelas mais odiosas rapinas e as mais nefandas crueldades que regista a história. Não tínhamos o menor comércio com as nações policiadas: como queríeis que inventássemos – nós, os mais terrestres dos homens – um sistema totalmente espiritual?.

“Não nos servíamos da palavra correspondente a alma senão para exprimir a vida. Não conhecemos nosso Deus e seus ministros, seus anjos, senão como entes corporais: a distinção de alma e corpo, a idéia de uma vida após a morte só podem ser fruto de longa meditação e filosofia muito fina. Perguntai aos hotentotes e aos negros, que habitam um país cem vezes maior que o nosso, se conhecem a vida futura. Cremos haver feito muito persuadindo nosso povo de que Deus punia os malfeitores até a quarta geração fosse pela lepra; fosse por mortes súbitas, fosse pela perda do pouco que possuíssem”.

Replicar-se-ia a essa apologia: “Vós inventastes um sistema cujo ridículo entra pelos olhos: o malfeitor bem aboletado na vida e com a família a prosperar devia naturalmente rir-se de vós”.

Responderia o apologista da lei judaica: “Enganai-vos: para um criminoso que raciocinasse bem haveria cem que nem raciocinariam. Aquele que, cometido um crime, não se sentisse punido na própria pessoa nem na do filho, temeria pelo neto. Demais, se não tivesse hoje alguma úlcera asquerosa, a que freqüentemente estamos sujeitos, tê-la-ia ao cabo de alguns anos. Em toda família sobrevêm desgraças e fácil nos era fazê-las crer enviadas pela mão divina, vingadora das faltas secretas”.

Seria fácil retrucar a essa resposta, dizendo: “Vossa escusa é inconsistente, pois diariamente pessoas honestas perdem a saúde e os bens. E se não há família a que não aconteçam infortúnios, e se tais infortúnios são castigos de Deus, então todas as vossas famílias eram famílias de estafadores”.

O padre judeu ainda poderia retorquir. Diria existirem males próprios da natureza humana e males expressamente enviados por Deus. Mas far-se-ia ver a esse raciocinador o quanto é ridículo pensar ser a febre e o granizo ora punição divina, ora efeito natural.

Enfim, fariseus e essênios, entre os judeus, admitiram a crença de um inferno a sua moda. Esse dogma já passara de gregos a romanos, e foi perfilhado pelos cristãos.

Muitos santos da igreja não acreditaram nas penas eternas. Parecia-lhes absurdo torrar eternamente um pobre diabo só por haver roubado uma cabra. Em vão clama Virgílio no sexto canto da Eneida:

... Sedet aeternunque sedebit

infelix Theseus (42).

Em vão pretende achar-se Teseu para todo o sempre sentado numa cadeira, sendo tal postura o seu suplício. Criam outros ser Teseu um herói que não se acha no inferno, mas nos Campos Elíseos.

Não há muito um piedoso e honrado huguenote(43) pregou e escreveu que um dia os precitos teriam sua mercê, que cumpria haver proporção entre pecado e suplício e que a falta de um momento não podia merecer um castigo infinito. Os padres seus confrades depuseram esse juiz indulgente. Disse-lhe um deles: “Meu caro, não creio no inferno mais que você. Mas é bom que o creiam a sua criada, o seu alfaiate e também o seu procurador”.

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 09/07/2012
Código do texto: T3768502
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