O BAILE DE MÁSCARAS
Fui convidado para um baile de máscaras em minha cidade natal, uma festa que prometia ser o evento do século, e de certa forma acabará sendo. O afortunado anfitrião informou por meio do convite que todos deveriam ir fantasiados e com máscaras, ninguém deveria saber a identidade do outro. Mas pediu que cada convidado enviasse sigilosamente o nome e a fantasia que usaria, uma medida para impedir a presença de clandestinos. O anfitrião explicou que nem ele teria acesso a essa lista de convidados e suas respectivas fantasias. A lista ficaria com a empresa organizadora, que não era da cidade, logo não poderia identificar ninguém.
A população da cidade ficou em polvorosa, a proposta do bom anfitrião foi prontamente aceita e cada convidado manteve sua indumentária em completo sigilo. Maridos e esposas, pais e filhos, irmãos e irmãs, todos ignoravam mutuamente as fantasias alheias. Porém, utilizando-me de meios que não elucidarei aqui, consegui uma cópia da lista, e descobri a fantasia de cada convidado, em sua maioria pessoas ilustres, com a moral inquestionável, de minha boa cidade. Como um antropólogo eu me propus a observar o comportamento humano nessa peculiar interação de anonimato.
Foi um acontecimento que ouriçou toda a população, até mesmo os que não foram convidados se aglomeraram nos portões do casarão, tentavam adivinhar quem era quem. Mas cada convidado teve o maior cuidado em não deixar pistas sobre sua identidade. Os funcionários da empresa organizadora também estavam mascarados, e seus uniformes transmitiam bem o clima que o anfitrião queria passar. Todos usavam uma máscara de macaco e uma camisa branca, onde estava estampada a célebre imagem dos três macacos sábios, nada ouço, nada vejo e, principalmente, nada falo. O salão estava decorado em estilo romano, ornamentadas cortinas criavam ambientes particulares, ilhas de falsa privacidade em meio ao mar de gente. No centro do salão, um belo chafariz de vinho transbordava taças ávidas pelo líquido vermelho.
O que vi nesse baile me divertiu bastante inicialmente, mas no decorrer da noite os meus sentimentos sofreram uma forte metamorfose. O divertimento cedeu lugar a uma crisálide sensação de constrangimento e desconforto que, após algum tempo de observação, se rompeu em um profundo asco por meus pares. Era como se nosso anfitrião tivesse colocado um anel de Giges no dedo de cada convidado e lhes dado a dádiva da invisibilidade, pois de tudo vi-os fazer sem importar com a censura de outrem.
Na sacada que dava vista para o salão se reuniram distintos senhores, e lá ficaram por toda noite confabulando e apreciando os requintados petiscos e drinks. Como se tivessem combinado trajavam belos ternos e máscaras de porcos. Lá estavam o prefeito e seus partidários, alguns importantes empresários da cidade e o presidente da câmara, ferrenho opositor de nosso mal falado chefe executivo. Pelas pessoas que reconheci na sacada soube imediatamente que o privilegiado ponto havia se tornado um verdadeiro chiqueiro. Inimigos políticos por lá passavam a todo o momento, gargalhadas amistosos se faziam ouvir, abraços calorosos eram trocados, e não só abraços, pois confesso que vi dinheiro trocando de bolsos também, seletas acompanhantes prestavam lá mesmo seus apreciados serviços. Com certeza se revelavam uns aos outros, mas ao fim da festa quem poderia provar?
Talvez eu tenha sido a única testemunha ocular do que se passava no célebre chiqueiro, uma vez que cada convidado estava ocupado em seu deleite particular. No canto escuro do salão, um belo sofá vermelho abrigava o prestigiado vereador, forte candidato a fazer frente ao atual prefeito nas próximas eleições. Sua bandeira é “a defesa da moral e dos bons costumes familiares de nossa cidade, valores esquecidos pela atual administração”. Apesar de não ser o idealizador daquele bacanal, estava fantasiado de Baco, com uma longa túnica branca e o rosto oculto por uma máscara douradas. Sobre a cabeça pesava uma volumosa coroa de flores, que reduzia seu volume, pois ele oferecia uma flor a cada dama que cruzava seu caminho. Com uma mão ofertava os agrados e com a outra apalpava a jovem e bem criada Dalila, filha da beata mor da cidade. Mas, antes dela, aquelas experientes mãos já haviam se fartado em várias outras jovens donzelas. Com certeza o grande defensor da família não teve muita dificuldade em deixar a enferma esposa em casa para se divertir um pouco.
Dalila, exemplo de filha e devota fervorosa, estava fantasiada de fada, com poucas roupas e uma máscara branca coroada. Seu belo corpo não seria reconhecido por ninguém, já que era famosa por seus longos e funestos vestidos, que ocultavam a sua formosura. A rainha das fadas havia se esfregado em muitos homens naquela noite, porém se ateve mais ao nosso, quem sabe, futuro prefeito. Desconfio que foi ela quem colocou a cabeça de asno em seu ingênuo noivo Willian, mas se não fosse um asno posso apostar que o jovem viria de palhaço. O desorientado asno estava perdido na festa, andava de um lado para o outro, presumo que tentava descobrir qual das bacantes era sua amada noiva.
O senhor Arman, renomado médico da cidade, e sua esposa dona Marta, renomada beata da cidade, não poderiam estar melhor caracterizados, ela vestida de vaca holandesa e ele de boi, com longos chifres. A situação dos dois era bem cômica, enquanto ela era ordenhada por várias, e anônimas mãos, o pobre corno encontrava dificuldade de se locomover no cheio salão com seus chifres agarrando nas cortinas e balões. Assim como o asno perambulou pelo salão procurando, inutilmente, sua esposa.
Nosso querido anfitrião chegou como convidado, para não despertar desconfianças de sua identidade, logo seu nome também estava na lista. Trajava um terno marrom e cobria o rosto com uma felpuda máscara de raposa, mas essa raposa soube ser boa anfitriã, serviu cada convidado com o prato que lhe aprouvesse e eles se esbaldaram como nunca. Chego a pensar que ele sabia muito bem quem era quem, como um voyeur ele se esgueirava observando a todos, tinha especial interesse por mulheres casadas, apalpava a que encontrasse pela frente enquanto percorria o salão interagindo com seus despreocupados convidados.
À medida que a fonte preenchia as insaciáveis taças com mais vinho, os obscuros e pervertidos desejos daquele renomado, e socialmente reprimido, grupo se desvelava. Pessoas para quem parecer é mais importante do que ser, aproveitando-se do anonimato, se abriam umas para as outras como livros sem capas. Mas eu conhecia muito bem as referências bibliográficas desse faustoso e bizarro acervo de imoralidade. Não havia limites para o que muitos faziam, presenciei traição e violência, incesto e orgias, tudo antes da décima segunda badalada. A repulsa cresceu dentro de mim ao ponto de meu estomago rejeitar a ingestão de qualquer alimento ou bebida.
Com certeza os privilegiados convidados, desse memorável evento, acabaram por se reconhecer no decorrer de suas íntimas interações, contudo nessas relações o anonimato está fortemente apoiado pela cumplicidade. Voltarão para suas casas, satisfeitos e saciados, após passearem de mãos dadas pelo jardim das delícias, tendo a certeza de que nada será dito, e continuarão levando suas vidas honrosas. Manterão a postura de censores, condenando a todos que ajam de maneira contrária a seus falsos valores, farão isso, pois a derradeira arma dos hipócritas é o esquecimento. Guiado por minha curiosidade cometi um ato, também, imoral, mas que serviu para revelar que, na verdade, participei de um grande baile sem máscaras. Cada concidadão, que tive a oportunidade de observar, revelou sua verdadeira face, e no dia seguinte vestiu sua fantasia. Desfilam pela sociedade das aparências como bons maridos, esposas fiéis, filhos exemplares, políticos honestos, cristãos fervorosos, guardiões da moral, etc. Não posso ficar calado diante de tudo que vi. Cada indivíduo dessa cidade merece saber quem são as tradicionais pessoas que pairam sobre ele, como exemplos de boa conduta. Não podemos permitir que continuem em seus altares escondendo seus pés de barro, por isso escrevo essa carta aberta à nossa cidade.
Presumo que cada convidado despido de suas briosas vestes por essas linhas, poucas para dar conta de cada detalhe, deve estar sequioso por saber quem é o traiçoeiro autor desse revelador texto. Eu observei vocês o tempo todo durante a festa, não participei de seus grupinhos, não me envolvi com nenhum dos presentes em seus deleitosos momentos. Mas vocês estavam ocupados demais para perceber o atento lobo pardo que circundava a todos, o único lobo em todo o salão. Com certeza alguns se lembrarão prontamente de meus insistentes olhares e cumprimentos distantes, mas não importa, quando lerem o que escrevi já terei vestido minha fantasia de cordeiro. Caminharei junto de vocês, saudarei a todos nas ruas e ficarei igualmente injuriado com as verdades ditas nesse “duvidoso” relato do grande baile sem máscaras.