A VOZ

Ele estava lá, como todo dia. Senta-se sempre na primeira mesa e pede uma bebida. Toma dois copos e depois faz sua ligação que dura horas. Ernesto perde-se no tempo e na sua solidão acompanhada da voz que o ouve atentamente. Fala ele das suas dores e das suas melancolias. Às vezes podemos ouvir um sorriso e quando em vez uma gargalhada. Seu Peres, dono do bar já se acostumou a ver aquele homem todos os dias naquela mesa que já lhe fica reservada.

Hoje a noite está convidativa. Uma lua intensamente bela e cheia ilumina o céu quase sem estrelas. Um vento suave sopra pela minha janela e desço as escadas do apartamento. Vou ao bar e sento-me ao lado de Ernesto. Ouço palavras como “querida”, “meu anjo” e todo tipo de carícia verbal sair da alma daquele homem que durante o dia está trabalhando na construção civil e à noite senta-se majestosamente no seu trono. Fiquei ali ouvindo a conversa. Longa por sinal, mais de duas horas. Ao fim ele pede a conta e se vai caminhando lentamente, celular no bolso, provavelmente já descarregado e talvez cansado de tantas palavras melosas e indigestas aos excessivamente racionais e descrentes do amor.

Mas o que é o amor? O sorriso daquele homem após seu longo colóquio é um amor? Onde estará Silvânia, a mulher do outro lado da linha? É possível amar assim? Já faz três anos que essa cena se repete e ele sempre volta sorrindo. Ela nunca apareceu na nossa pequena cidade e eu não sei onde ela vive. Logo ali não poderia ser, senão já teriam se encontrado. Mas afinal de contas, que tenho eu a ver com isso? Fiquei apenas ouvindo algo que não me diz respeito e indagando sobre a racionalidade dos sentimentos.

No meu mundo os sentimentos são inexistentes na sua essência e quando existem são raros e ainda assim, efêmeros momentos da perda da lucidez de quem ama. Olho e contemplo a lua amada dos poetas e enamorados e sinto em mim uma inveja daquele homem. Minha racionalidade não me permite abrir o coração e sorrir com uma simples ligação que já dura três anos sem contato físico algum. Queria às vezes ter essa pureza e essa ingenuidade. Com um coração de pedra despeço-me do último copo de cerveja e volto para minha solidão de quatro paredes, com o telefone no bolso, calado, tal qual minha’alma dentro de um corpo sujeita à prisão enquanto na terra se vive.

De volta olho a mesa e pareço vê-lo ainda chegando de banho tomado, pronto para um encontro com a amada que só existe entre as vinte e vinte e duas horas, período que inicia seu sorriso que só termina com o sono apaixonado. Enquanto que eu curto a rua, gente indo e vindo, o corpo sentindo uma leve embriaguez e a alma perfurada de amores mal resolvidos, racionais, meticulosamente delineados nos moldes das regras sociais, dos elementos econômicos, das visões de futuro profissional, das festas sociais acompanhadas de bebidas refinadas e etc. E talvez por isso, amores inexistentes que não duram mais que um encontro físico, e portanto vazios como a alma racional de cérebros superlotados de ideias inúteis.

Enquanto isso Ernesto dorme o sono mais tranquilo, mesmo lembrando sua Silvânia que só se conhece por uma única foto de rosto, que como ele estampa um sorriso largo até que o destino ou a sua pobreza sábia os permitam um abraço que certamente não durará duas horas apenas, mas uma eternidade.

Ouço o relógio da velha matriz badalar duas da manhã. A cama fria me espera para uma noite de sono (ou não) para que amanhã recomece meu dia imaginando que alguém poderia estar aqui comigo, mesmo que fosse uma voz distante, mas presente. Amanhã quem sabe esqueço os resultados práticos e invisto numa folha em branco. Mas minha agenda sobre a mesa com páginas rabiscadas me levarão certamente ao contrário, até que um dia eu me sente na mesa de um bar e me permita não fazer nada, a não ser olhar o outro. E com outro olhar.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 06/07/2012
Código do texto: T3764039
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