Viagem estrangeira: olhando com Sebastião Salgado.

www.pporto.blogspot.com (Patrícia Porto - "Sobre Pétalas e Preces")

Olhos do Céu.

Alegria: um revoar de passarinhos que juntos, em sincronia, margeiam árvores que fazem sombra para um revoar de criancinhas.

Vida: uma invenção.

Passarinhos: substantivo e plural, um coletivo de asas.

Crianças: plural de passarinho.

AlgUmas Palavras sobre o poemeto.

Em 1981 eu tinha onze anos e também fiz comunhão.

Aqueles que me conhecem sabem o quanto amo a arte da fotografia e que também sou uma perseguidora de imagens ou talvez uma pessoa perseguida por elas. Por muitas vezes foram as imagens de fora, na expressão do mundo e do cotidiano, que me levaram à poesia e por outras vezes foram outras, as imagens de dentro exorcizadas, que me levaram a um percurso contrário, indo buscar as mais diversas, talvez inusitadas, parcerias entre imagens e palavras. Por isso mesmo não consigo esquecer a primeira vez que me vi diante das fotografias-militantes, das imagens engajadas de Sebastião Salgado. Tanta força e delicadeza através de lentes, possibilidades e intensidades de olhar o outro na sua legítima força de expressão e cultura... Tanta plasticidade em preto e branco, tanta luz e sombra, tantas aberturas. Um passeio, um zoom na alma humana, nas suas raízes, nas suas dores, nos seus fazeres. Tantos modos de ser e tanta fartura de olhar. Fiquei extasiada e tive o ingênuo e instantâneo frenesi de escrever um poema para uma imagem dele, uma imagem de uma criança de olhos imensos e tristes. Tão tristes que eu chorei. Não sei ainda explicar o que senti e sinto, mas se lembro da imagem me vem de inicio um redemoinho de emoções que encharcava e encharca ainda os olhos, acho que é porque eu sou gente e gente vê de dentro por dentro do dentro o mundo de outra gente. E isso não é piegas, piegas é enjaular-se num pretenso saber que enrijece o corpo como doença degenerativa e cala a alma e suas muitas linguagens. Então, eu que sou gente como tanta gente, posso ver e olhar a criança que eu fui e as crianças que fizeram a minha história de educadora, como se habitassem no mesmo túnel do tempo os olhos e a cegueira, como se fossem a íris e a pupila uma mandala a afastar e aproximar quem fomos e somos num eterno jogo.

Ao olhar a imagem daquela criança, justamente naquela hora de dizer o que eu pensava sentir, a escrita tornou-se uma ação ingênua e inútil. Uma excelente oportunidade de frustração. Porque quem escreve sabe disso. Vive-se muito mais dias de frustrações. E percebi que nada pensado no escrito seria suficiente. Nenhum registro em palavras faria jus àquela forma tão desestabilizadora de olhar e principalmente - sentir - o homem na sua narrativa cultural. Insisto - "narrativa". Confesso que, naquela inquietude, queria mergulhar naquele olhar de Sebastião, o que logo me fez desistir de escrever com o pensamento. Faltava a mim maturidade e sabedoria, esse terceiro andar e olho da consciência para além do conhecer e informar. Faltava sentir. Lembro então de Eduardo Galeano no Livro dos Abraços e do texto que falava de um menino que não conhecia o mar. Diz a história do mestre:

"Diego não conhecia o mar. (...) Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar!"

Eu, assim como Diego, fiquei miúda e muda de beleza. Mas, ensimesmada na minha adultice, não pedi a ninguém: "— Me ajuda a olhar! Me ajuda a olhar!" Somente muito tempo depois, eu aprendi a pedir ajuda. “"— Me ensina! Me educa! Me ajuda a olhar!" E um dia, entrando num transe imagético, reencontrei parte desse pedido e parte da minha própria narrativa. Entre lembranças e esquecimentos necessários, uma reminiscência bateu em mim e, como diziam os antigos, pegou-me “de chofre”. Lembrei das cenas e imagens da minha primeira comunhão e de uma foto que era para mim assustadora e que foi perdida para o tempo, por excessos de mudanças e desastres. Acredito que ela tenha sido engolida por aquele velho baú-buraco-negro do espaço das memórias onde vagam perdidas as fotos depois das separações e também as meias que ficam sem par e os guarda-chuvas. Devo confessar que aquela fotografia me assustava um tanto, eu vestida de anjo sem nem ter morrido ainda. Tadinha. Vovó me acalmava dizendo coisas como: “as crianças são os olhos de Deus. Por isso as crianças são anjos e por isso os anjos moram com Deus.” Hoje eu lembro e acho tudo isso lindo e incrivelmente poético. Mas na época, quando eu tinha mais medo e distância da morte, aquela história de ir morar com Deus não me agradava em nada. Lembro de dizer naquela fluidez de fala de criança: "Mas vó, eu ainda prefiro morar com você...” E foi cosendo esses retalhos de memórias, essas viagens desse olhar estrangeiro, que eu perseguia uma imagem que comungasse com a minha reunião de sentidos. E então a encontrei. E reencontrei os olhos de Sebastião Salgado que é para mim, e definitivamente, a melhor tradução imagética para os versos de um outro olhador de almas, o poeta Bartolomeu Campos Queirós:

Quando olhamos

nós acordamos alegrias, tristezas,

saudades, amores, lembranças,

que dormem em nossos corações

Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro.

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Olhos: Sebastião Salgado

Olhos: Eduardo Galeano

Olhos: Bartolomeu Campos Queirós

Viagem: Patricia Porto

Patricia_Porto
Enviado por Patricia_Porto em 05/07/2012
Reeditado em 06/07/2012
Código do texto: T3762352
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