UM VAPOR, UM RIO E UMA SAUDADE
Era uma daquelas madrugadas fria, final de primavera. As flores em profusão, respingadas do suor da serração, ainda em êxtase, exalavam mil perfumes pelo ar. As borboletas ainda dormiam embriagadas ou dopadas pelo néctar roubado nos jardins. Tudo era maravilhosamente deserto em descanso profundo, e assim, maculando este cenário, caminhava eu a esmo no ritmo da dança das recordações.
Mais adiante avistei o solitário vapor Pery. Ele me viu e feliz, bocejando, acenou para mim. Mecanicamente acenei também.
Cheguei, como quem não quer nada, e me postei encostado nele como puta velha buscando soluções para coisas impossíveis e insolúveis.
- Oi! Velho camarada, disse a ele batendo várias vezes com a palma da mão no seu casco.
- Oi, respondeu-me ele parecendo um pouco triste e saudoso.
- O que acontece? Algum problema? Sempre o vi alegre e esperançoso?
Ele suspirou, num suspirar de imensa tristeza e como se estivesse num divã desfiou suas mágoas em torrentes sem fim.
O Pery estava ali, preso, estaleirado como um corpo inerte numa cirurgia completa de restauro. De onde ele estava tinha uma visão privilegiada do rio, e por isto, perdia-se em tantas ferrugens almejando desesperadamente o singrar por aquelas águas como dantes navegara. Tinha esperança e, de qualquer forma, isto alentava a sua vida metal.
- Há tempo não vejo meus amigos vapores Leão, Paraná, Iguassu, Sara, Vitória e tantos outros! O que é feito deles? Perguntou-me em voz rouca.
Bateu-me a saudade e uma imensa tristeza invadiu minha alma.
Pensei um pouco e disse que estavam felizes aguardando a volta dele nas águas do rio.
Foi para ele uma gota de alento esta informação.
Contou-me da alegria quando, rio acima ou rio abaixo, cruzava com seus amigos. O silvo rouco, a chaminé soltando fumaça e fagulhas era o conversar deles na solidão do rio, que feito uma serpente, com suas águas deslizando transparentes e lépidas lambendo sôfregas as margens que as continham. Ele, numa voz quase sumida, contou-me dos lenços brancos nas mãos dos passageiros ao cruzar das embarcações.
Subi até ao convés para melhor conversar com ele.
Para não desanimá-lo completei dizendo que os amigos dele estavam também sendo preparados para a grande festa da volta. A certeza que todos tinham é de que sem tardança aquelas águas novamente estariam felizes acolhendo todos os barcos e vapores; E no vai e vem das ondas espumantes provocadas pelas rodas d’água, transportariam felizes mercadorias e pessoas. Seria tudo como dantes.
Ele sorriu!
Fui até a proa, passei a mão nela, e sentado por alguns momentos olhei o rio que se perdia numa curva mais adiante. Olhei demoradamente, e colocando-me no lugar dele pude perceber a angustia que meu querido vapor passava, estaleirado ali, e tanto tempo sem o contato com as águas.
O gigante estava no ancoradouro, quase inútil preso, um tanto carcomido pela ferrugem, sendo aos poucos restaurado, apenas para servir de deleite para alguns curiosos que se postarão junto a ele para fotos futuras de recordação. A condenação para a inutilidade do Pery estava numa situação irreversível. Ninguém tinha mais paciência para estas viagens de prolongado tempo, e o rio maculado pela imundície e de leito aterrado pelo areal não se prestaria para qualquer tipo de navegação.
E o pobre Pery isolado, triste desconhecia tudo isto.
Estava ali, tal qual um moribundo que lhe escondem a doença, acreditando que ainda navegará pelo rio Iguaçu.
E continuei meu conversar.
Lembrei com ele a beleza e o encantamento da procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. O Rio ficava apinhado de barcos e vapores enfeitados que deslizavam graciosos pelas águas do rio. Sumiam na curva da nascente e apareciam logo mais para o delírio, com palmas e vivas, gritadas pelo povo que se aglomerava na margem direita, na entrada do porto.
Lembramos dos momentos festivos, e o burburinho buliçoso do povo no embarque e desembarque. Da retirada das entranhas dos vapores as mercadorias, e da cena bucólica das senhoras de vestidos longos e chapéus enfeitados e de seus homens em terno e gravata. A chegada do vapor no porto, anunciada pelo seu silvo rouco, era motivo de festa. A população se enfeitava, e feito criança descia para ver, para saber, para fofocar, e para participar.
Ele riu um pouco do jeito dele, matutou por alguns segundos e perguntou depois de um longo suspiro:
- Você acredita mesmo que eu posso novamente singrar todos estas milhas de água novamente?
O sol já aparecia despertando as borboletas, os entregadores de pão, as fofoqueiras de plantão e tantos outros viventes.
O campanário lá mais para o alto tocou o sino do nascer do dia.
Não respondi. Apenas fiquei olhando condoído para aquele gigante e confesso que vi lágrimas em profusão nas suas feições.
Mudei de direção o meu lacrimejado olhar e olhei saudoso para aquele rio podre, lodoso; Muitas lembranças boas me vieram; Voltei-me então para o Pery, e mais uma vez contemplei condoído o vapor enferrujado; E para não chorar com ele, afastei-me dali no meu passo mole, de um passar incerto que me levou para a realidade nua e crua que me vestia do agora cruelmente.