A ARCA
Toda vez que vou a Vassouras tenho uma atração por uma arca que está no saguão da pousada Maravilha. Lá a gente almoça ao som de piano ao vivo.
O Buffet nem sempre é perfeito, mas eu não to nem aí. O espaço é gostosíssimo e eu me sinto muito à vontade naquele lugar – começando pelo saguão, onde eu me deparo com uma velha arca.
O móvel não tem nada de excepcional, mas eu me atraio por ele por alguma razão. Talvez pelos espelhos das portas. Em todas as ocasiões eu fotografei minhas pernas refletidas pelos espelhos das portas.. É só eu entrar no hotel que começo a fotografar enlouquecidamente, tentando centralizar meus pés e pernas num quadro meio absurdo.
Sempre estou com pressa e me apressam. Todo mundo quer guardar suas mesas e atacar as comidinhas do self service, mas eu sempre estou noutra dimensão, alheia aos apelos dos amigos me chamando. Talvez por isto eu nunca tenha conseguido uma foto bacana. Tudo bem, faz parte...
Na última visita ao lugar, enquanto eu fotogafava, passei a observar mais atentamente a minha perna direita, prejudicada por um problema articular no joelho, o que me causa dor e que vem atrapalhando demais minhas andanças turísticas. Neste momento aproximou-se de mim um senhor, talvez um guia turístico, intrigado com meu interesse pelo referido móvel:
- “É uma obra de arte, com detalhes esmeradamente lapidados...”.
Concluí que ele se referia à arca, mas respondi como se nós conversássemos sobre minha perna:
-“Mas está passando do prazo de validade...”.
Ingenuamente ele contestou:
-“Não senhora! Quanto mais antiga mais valiosa se torna, principalmente tão bem conservada como esta aí!”.
Eu mudava a posição das minhas pernas, tentando focar um melhor ângulo, em incessantes cliques, quando acrescentei:
-“Se o senhor observar bem, o pé direito está ficando torto”.
Ele apontou para frente e pra baixo e disse:
-“Se a senhora observar bem, os pés são originalmente tortos!”.
Desta vez eu concordei com ele e continuei:
-“Ela carrega valores que hoje em dia não reconhecem mais...”.
Como um professor, ele passou a explanar dados históricos e culturais:
-“Sim, um passado importante. Ela é secular e pertenceu à família de um grande cantor brasileiro de ópera do século retrasado”.
Eu não entendi se era a ópera que era do século retrasado ou se ele se referia ao tempo em que o cantor viveu. Eu, que já passei por dois séculos, fiquei na dúvida: o cantor era tão antigo quanto a arca?
Depois de eu ter tirado em média umas 30 fotos, sem ter sucesso com a nitidez, despedi-me dele e saí mancando. Metros adiante, olhei pra trás e vi que o senhor me imitava, olhando para seus sapatos no espelho. Daí entendi que ele tinha a exata consciência de nosso diálogo.
Leila Marinho Lage
http://www.clubedadonameno.com
Toda vez que vou a Vassouras tenho uma atração por uma arca que está no saguão da pousada Maravilha. Lá a gente almoça ao som de piano ao vivo.
O Buffet nem sempre é perfeito, mas eu não to nem aí. O espaço é gostosíssimo e eu me sinto muito à vontade naquele lugar – começando pelo saguão, onde eu me deparo com uma velha arca.
O móvel não tem nada de excepcional, mas eu me atraio por ele por alguma razão. Talvez pelos espelhos das portas. Em todas as ocasiões eu fotografei minhas pernas refletidas pelos espelhos das portas.. É só eu entrar no hotel que começo a fotografar enlouquecidamente, tentando centralizar meus pés e pernas num quadro meio absurdo.
Sempre estou com pressa e me apressam. Todo mundo quer guardar suas mesas e atacar as comidinhas do self service, mas eu sempre estou noutra dimensão, alheia aos apelos dos amigos me chamando. Talvez por isto eu nunca tenha conseguido uma foto bacana. Tudo bem, faz parte...
Na última visita ao lugar, enquanto eu fotogafava, passei a observar mais atentamente a minha perna direita, prejudicada por um problema articular no joelho, o que me causa dor e que vem atrapalhando demais minhas andanças turísticas. Neste momento aproximou-se de mim um senhor, talvez um guia turístico, intrigado com meu interesse pelo referido móvel:
- “É uma obra de arte, com detalhes esmeradamente lapidados...”.
Concluí que ele se referia à arca, mas respondi como se nós conversássemos sobre minha perna:
-“Mas está passando do prazo de validade...”.
Ingenuamente ele contestou:
-“Não senhora! Quanto mais antiga mais valiosa se torna, principalmente tão bem conservada como esta aí!”.
Eu mudava a posição das minhas pernas, tentando focar um melhor ângulo, em incessantes cliques, quando acrescentei:
-“Se o senhor observar bem, o pé direito está ficando torto”.
Ele apontou para frente e pra baixo e disse:
-“Se a senhora observar bem, os pés são originalmente tortos!”.
Desta vez eu concordei com ele e continuei:
-“Ela carrega valores que hoje em dia não reconhecem mais...”.
Como um professor, ele passou a explanar dados históricos e culturais:
-“Sim, um passado importante. Ela é secular e pertenceu à família de um grande cantor brasileiro de ópera do século retrasado”.
Eu não entendi se era a ópera que era do século retrasado ou se ele se referia ao tempo em que o cantor viveu. Eu, que já passei por dois séculos, fiquei na dúvida: o cantor era tão antigo quanto a arca?
Depois de eu ter tirado em média umas 30 fotos, sem ter sucesso com a nitidez, despedi-me dele e saí mancando. Metros adiante, olhei pra trás e vi que o senhor me imitava, olhando para seus sapatos no espelho. Daí entendi que ele tinha a exata consciência de nosso diálogo.
Leila Marinho Lage
http://www.clubedadonameno.com