Lágrimas de Tinta
Um dos momentos mais engraçados que uma vida como escritor proporciona é o momento de anunciar a um recém conhecido com o que trabalho.
- O que você faz?
- Eu? Eu sou escritor.
A cara que as pessoas fazem é hilária. Uma mistura de espanto, reprovação e admiração.
Espanto porque são poucos que declaram abertamente que exercem esta função e, também, porque sou o único que elas conhecem a fazer do ato de escrever um hábito regrado e contínuo.
Reprovação porque ninguém vê futuro em ser escritor. Consideram uma profissão infrutífera. Um disfarce para um caráter desleixado.
Admiração porque sou um dos poucos a confessar abertamente e buscar esforçadamente a realização de um projeto de vida. A maioria se rende a necessidade de dinheiro. Correr atrás de um sonho de criança é raridade. Por isso surpreende.
Ser um escritor não é parar em frente a um computador e, simplesmente, digitar frases que componham um texto significativo. O processo não é fácil. É doloroso. Quem afirma ter facilidade para escrever, desculpe, não é um escritor de verdade.
Um conto, uma poesia, uma crônica, uma dissertação que seja não se limitam a uma folha e uma caneta. São muito maiores do que qualquer explicação e compreensão literária. É abstrato e não tangível. Qualquer conclusão tirada apenas com que é escrito é superficial. As entrelinhas guardam os segredos. O verdadeiro sentido não está nas afirmações, mas nas exposições.
Um texto não é um produto - ao menos não deveria ser. É uma expressão do íntimo de cada autor. Uma personificação do consciente e do subconsciente de quem escreve.
Deus se tornou homem para ser compreendido. O escritor idealiza romance e poesias para ser entendido.
Escritor não é uma pessoa simples. Há sempre uma excentricidade encravada na espinha dorsal de suas obras. O processo criativo comprova o que digo.
Raúl Seixas compôs os maiores sucessos da música brasileira confinado em uma cabana mal iluminada, no meio do mato e de cócoras. A posição de galinha que põe ovo gerou um repertório altamente influente até hoje. Fico a imaginar o que o Maluco Beleza consumia nestes momentos sinistros de criação.
O americano Charles Bukowski deixou claro em diversos contos e crônicas que para conseguir criar algo precisava estar alcoolizado. No seu auge produtivo a quantidade de obras desenvolvidas demonstrava o quanto ele bebia. Em um estado degradante de sobrevivência ainda conseguia ser profundo e rico nas exposições de seus personagens, quase sempre influenciados por suas experiências.
Até as mais belas poesias presentes na Bíblia foram compostas em momentos adversos. O livro de Salmos, que reúnem escritos de vários autores, relata histórias reais de homens que em meio a guerras e circunstâncias injustas encontraram em Deus o alívio necessário para prosseguirem em suas jornadas.
O que eu escrevo também traz tragédias e desafios do meu dia a dia. Já escrevi enquanto as pessoas ao meu redor discutiam e se digladiavam ferozmente. Já escrevi histórias ricas enquanto o que me cercava era pobre. Já compus usando minhas lágrimas como tinta para a caneta.
Criticam-me por ser melancólico. Não me importo. Minha personalidade é a principal responsável pelas minhas criações. Cientificamente está provado que isso é saudável. O processo artístico é uma forma de desalojar a tensão e a dor presentes nas emoções.
O resultado de horas labutando para criar o que você lê não é uma expressão única. O artista não se limita a uma composição. Sua vida é uma obra de arte.
Uma crônica é consequência das milhares de informações, sentimentos e ideias que vão surgindo e sendo processados durante horas, talvez dias. O texto em si é apenas uma fatia da torta criada na minha cabeça.
Arte não é apenas um sorriso ou uma imagem agradável. É dor e pranto. Perda e ruína. É a redenção após uma tragédia. Arte é uma maneira de divinizar sua existência. Encare sua vida e seus problemas de outra forma. Assim verá que você também é um artista.
Quando isso acontecer acabará o espanto quando disser que sou escritor.