A VERDADE DAS FORMIGAS
[ espaço para necessária epígrafe ]
ISSO AQUI ESTÁ ME LEMBRANDO AQUELA VEZ, quando eu tinha mais ou menos uns cinco anos e experimentei matar uma formiga, partindo-a ao meio. A visão da agonia da formiga me fez chorar copiosamente por mais de uma hora. Acho que chorei durante toda aquela semana.
Há sempre muito o que se aprender com formigas. Sempre. A manhã do último sábado foi tão intrigante quanto reveladora: numa licença para apontamento paradoxal. E o assunto são formigas. Uma cena impactante. Por todo o meu quintal muitas formigas mortas. Deixa eu tentar explicar. Era muita formiga. Muita. Olhadas inadvertidamente, poderia parecer que alguém havia espalhado pó de café ou, sei lá, granulado de chocolate para brigadeiro, por quase toda a área do quintal. Mas eram formigas. Milhares. Quem sabe milhões. Amontoadas. E um detalhe: agonizando sob o sol que já acertava o solo. Retorciam-se, sofriam, sofriam, sofriam. Visão terrível. Por que motivo isso se deu?
Meu eu profético “gastou” pra caramba e, depois de um bom esforço mental, elaborou uma possível resposta. Raciocinei biblicamente. Pensei: o quintal do vizinho é o Egito; as formigas são o povo hebreu num êxodo em massa em busca de melhores condições de vida, melhor abrigo e, o mais importante, comida; o meu quintal seria a árida Península do Sinai, ou Deserto do Sinai, no caminho da Terra Prometida, que seria a minha cozinha, um local de destino incerto, desconhecido, que só o Deus das formigas indicaria a elas no momento que julgasse certo. E quanto à morte em massa? Porque elas pereceram? Num erro de cálculo, em face ao desespero, escolheram o lugar errado para onde migrar: um quintal cimentado com poquíssima área verde e pouquíssimos insetos. E, sendo formigas de um tipo carnívoro, começaram a padecer mortalmente de fome. Contei minha teoria à minha mãe, que mora (talvez se hospede) em sua casinha, no mesmo quintal. A princípio ela ficou impressionada. Salivou, arregalou os olhos, chegou a concordar com a hipótese e mesmo a me colocar num status de narrador ou profeta bíblico – admiradora da Bíblia que é. Até que. Bem. Até que ela parou, sossegou a idéia, pensou com calma e perguntou: “Tem certeza de que a Mary não jogou veneno?”. Ahhh! Imagina um negócio desse... E assim foi: “Puxa, mãe! Acho que a senhora acabou de destruir a minha parábola”.
Desvendando a fábula que criei: Mary, ao perceber que as formigas começavam, aos poucos, uma a uma, a entrar em nossa casa, correu um risco grosso de veneno nas duas portas, a da cozinha e a da sala, criando um tipo de bloqueio, de campo de força, que as impedisse de entrar. E deu certo. Elas não só não puderam entrar em nossa casa e se deliciarem com os alimentos, como, ao retornarem frustradas, foram contaminando umas as outras, causando assim o tal genocídio em massa. Perdão. Formicídio. Não cheguei a chorar dessa vez. Embora eu tenha ficado bastante chocado com o que vi. Era uma cena muito triste. Muitos seres em agonia. Entretanto, como não eram seres que pertenciam ao meu grupo, forcei-me a ignorar ali a presença incômoda da morte e seu espetáculo. Fiz como Hitler, talvez. E fui curtir meu sábado.