Cocção

Enquanto cozinhava um ovo, olhando pra dentro da panela e vendo o borbulhar da água em ebulição, comecei a pensar na diferença entre as substâncias cruas e as cozidas. São antônimos. Claude Lévi-Strauss, num trabalho sobre o estruturalismo, dizia que “O cru torna-se seu oposto, cozido”. Sim, são contrários, contudo, cozido ou cru, um ovo continua sendo um ovo, não é mesmo? As moléculas modificadas, mas, com a mesma essência do ovo. Claro, que quando cozido, o ovo se torna palatável, ao contrário do indigesto ovo cru. No entanto, há quem aprecie alimentos na forma crua, e também existem alimentos que quando cozidos, talvez, percam seu melhor sabor. Porém, independente de como se apresentem, um ovo é sempre um ovo, um peixe é sempre um peixe. E a partir daí começaremos uma reflexão trazendo o assunto para nós, homo sapiens, Homens, seres pensantes cheios de contradições e antagonismos.

Nós vivemos entre o cru e o cozido por toda nossa vida, numa constante modificação, uma cocção sem fim de sentimentos e atitudes. Nossas incoerências, nossas mudanças, nosso cozimento e “descozimento”, durante a vida, faz com que sejamos mutáveis, “crus ou cozidos”, mas, sempre seremos humanos. E por isso, por sermos humanos, somos feitos de virtudes e vícios, bondades e maldades, crueldades e indulgências. Por mais que queiramos nos mostrar sempre de uma forma agradável, politicamente correta, tenros como um ovo cozido, em nossos relacionamentos sociais, seguindo paradgmas do bom viver, não perdemos nossa essência humana, isso é imutável. O humano é sempre humano. Carregamos nela, nessa essência humana, lado a lado, nossa mesquinhez, sordidez, inveja, perversidade, generosidade, nobreza, desprendimento, decência... E isso não nos torna melhor ou pior do que ninguém, o que faz a diferença é o tempero, é a quantidade de cada um desses adjetivos, dessas qualidades, desses condimentos que colocamos em nossa vida, em nossas convivências, no nosso alimento social. Fazemos de tudo para temperarmos nossa imagem com os melhores sabores, contudo, nunca podemos esquecer que o tempero ruim está ali presente, sem realce, mas está ali. Tentamos avidamente sobrepor o paladar bom ao ruim, encobrindo o fel com o doce. Todavia, nem sempre vamos acertar no ponto, e algumas vezes, o gosto intragável, escondido em nosso recheio, vai repugnar outras pessoas, e nestas horas, seremos tão indigestos quanto um ovo cru. É natural, inevitável é humano. E não depende de maturidade, e sim das circunstâncias. Podermos ser crus ou cozidos, em todas as fases da vida. A grande diferença é que um ovo cozido não pode voltar a ficar cru. Ao contrário de nós que passeamos por todas as transformações do cozimento e voltamos ao cru, indo e vindo, ficando degustáveis ou impalatáveis, muitas vezes reféns do apreço do degustador. E isso é inerente a todos nós, não tem como separar.

Posto isso, podemos concluir que não adianta tentar encobrir nossas falhas, e fingir qualidades. Uma hora ou outra o humano real que existe em nós vai aparecer. Seu gosto ruim vai ser notado, não tem escapatória. Então, cru, cozido, bem passado, ao ponto ou sangrento, não importa o ponto de cozimento, o ideal é ser o que se é. Desta forma, possivelmente, aqueles que não nos engolem, ao menos, nos respeitarão.