Para Uma Jovem Escritora
“Este casamento você deve a mim”, disse-me a escritora enquanto autografava seu último livro. Aos 85 anos ainda mantinha um olhar juvenil, uma vivacidade privativa do espírito que não envelhece e fica cada vez mais jovem quanto maior a atividade. Ela tornara-se escritora aos sessenta anos. Sempre fora uma exímia contadora de histórias. A convivência com o marido-escritor introduzira-a na carreira. Agora eram vários livros publicados e, pela primeira vez, autografava na solidão; o companheiro partira e ela não desistira do ofício, uma maneira de manter-se viva, projetar a vida para além das fronteiras e viver em vários lugares ao mesmo tempo.
“Este casamento você deve a mim.”
Reportei-me a Salvador, trinta anos passados, a longínqua capital com suas cores, cheiros, ladeiras, praias, farol e carnavais. Não sei por quais desígnios a cidade me imantara. A praia da Barra e o encontro casual com o Edson Gattai levaram-me a conhecer a escritora na casa do Rio Vermelho.
Nesses trinta anos eu a vira duas ou três vezes. Ela fora uma espécie de intermediária sentimental entre mim e sua sobrinha com quem me casei. Daquela longínqua cidade voltei com uma determinação que se cumpriu.
Sua obra é memorialista. Retoma trechos da história de sua vida que se confunde com a nossa, com a da cidade de São Paulo, com a do Brasil de tantos imigrantes que nos antecederam e prepararam o terreno para as futuras gerações.
Algumas de suas atitudes chamaram-me a atenção no decorrer desses longos anos: a fidelidade às amizades, independente da cor política ou do credo; a coragem por declarar-se sem nenhum credo, por não conceber uma vida depois da morte; a dedicação ao amado marido e à família; a altivez e a dignidade de quem não teme críticas.
Das posições mencionadas, eu faria apenas um reparo: se o companheiro continua vivendo em sua recordação, segredando coisas aos seus ouvidos, dizendo que ela é uma danada por ter entrado na Academia, então ele não morreu, nem para ela e para os tantos leitores que aprenderam com ele a gostar de ler e de escrever.
Nagib Anderáos Neto
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Extraído do Livro “Guardados que Vivem”