O Vale Salvador
Morar sozinho fez eu me conhecer melhor. Saber do que gosto e do que não gosto de fazer nas tarefas domésticas.
Amo limpar a casa. Varrer e tirar o pó enquanto ouço música é um tratamento muito mais econômico e construtivo do que qualquer psicólogo. Aprendi a gostar de lavar roupa. O efeito que surtiu nos meus braços magros com a esfregação das camisas e calças foi envaidecedor. Aprecio organizar o roupeiro e minhas bugigangas. Meus livros estão separados por autores e editoras, enquanto meus DVDs estão divididos por estúdio.
Mas nem tudo são mil maravilhas. Cheguei à conclusão que não gosto de cozinhar. Não apenas não gosto, detesto cozinhar.
Deus queira que minha esposa aprecie a arte culinária. Topo até um trato: eu cuido de todas as coisas da casa, do interior e do pátio (se ela fizer questão de morar em casa, por mim fico no amontoamento habitacional do apartamento) enquanto ela se dedica às refeições. Ah, e ainda seco a louça de brinde.
Enfim, o que me salva é o mesmo que socorre tantos outros jovens solteiros assalariados por este mundo a fora. O vale refeição.
O vale refeição é a graça de Deus sobre o trabalhador. O sangue de Jesus sobre o adolescente em seu primeiro emprego. A antecipação da satisfação do dia 5, já que ele recarrega no dia primeiro. O criador da vida social de um solteiro.
Aquele cartãozinho amarelo tem me tirado de cada aperto. Sinto as paredes do meu estômago começarem a se grudar uma na outra, então lembro que posso tranqüilamente - eu sei que é sem trema, mas não faz sentido a palavra sem acento; liberdade poética, ora - solucionar o problema indo no restaurante aqui perto de casa.
Preciso admitir: o amarelinho nacional que utilizo atualmente é muito melhor que o azulzinho céu estadual. Para bom trabalhador meia descrição basta. Você entendeu. Enquanto o primeiro é aceito em quase todos os lugares, o último é muito restrito.
Posso tomar café no Mc'Donalds antes do trabalho, almoçar no buffet duas quadras ao lado, fazer um lanche na padaria na rua paralela a minha e jantar no Macaronni. Tudo isso sem comprometer meu orçamento real. Afinal, apesar de você estar comprando estes produtos, como é um cartão você não sente tanto.
Não sente nada, na verdade. Só no final do mês quando seu jantar com os amigos consumir quase todo seu crédito e você precisa economizar os últimos reais que o vale ainda possui. Posso comprar este salgado e um suco, refrigerante é muito caro.
Por falar em jantar com os amigos, que mão de duas vias essa. Assim como você tem prazer por desfrutar da companhia de seus chegados, há também o constrangimento da restrição do vale refeição.
O amigo convida "vamos jantar em algum lugar esta noite?". Você prontamente responde "claro, só uma condição: tem que aceitar meu vale refeição".
O pior não é com os amigos, mas com a namorada ou interesse romântico.
Chega início de mês e você quer fazer aquele agrado à sua princesa. Vamos ao shopping, amor? você propõe como autêntico cavalheiro. Ela se empolga e diz que sim. Você agradece a Deus por ela não preferir um restaurante no Moinhos de Vento, afinal a praça de alimentação do Iguatemi aceita seu vale refeição.
Você entra parecendo o Jim Carrey no filme "O Todo Poderoso": I get a power! Acompanha ela na Zara, vai ao cinema e utiliza a meia entrada que o jornal que você assina proporciona. Na saída ela acha que vai jantar no Outback, mas você a arrasta para o sushi da praça. Por que correr riscos? Ali você tem certeza que pode usar seu vale refeição.
A grande questão é a sobremesa. Todos os lugares que ela quer ir são muito caros. Mas este não é o problema e sim o fato que eles não aceitam seu cartão alimentação. Tudo bem, você concorda com o sacrifício. Realiza seu desejo. No caixa a atendente entediada pergunta qual a forma de pagamento. "No cartão" você responde. "Crédito ou débito" ela questiona. Com o coração partido você balbucia entre os dentes "crédito". Uma lágrima escorre por seu rosto enquanto sua amada acha você o homem mais generoso que já conheceu.
Tudo isso são adversidades até fáceis de lidar. A complicação real é quando vou ao restaurante que serve comida caseira aqui perto e o proprietário fixou logo na entrada uma placa com o dizer:
- Visa Vale fora do ar. Obrigado pela compreensão.
Meto as mãos no bolso e volto cabisbaixo para casa. Vou ter que cozinhar esta noite.