Escrita oculta

Ela precisava escrever, mas só podia fazê-lo escondida. O marido julgava perda de tempo qualquer expressão de arte. Durante o namoro, estudara-a e a seduzira levando-a aos lugares de que ela gostava: shows de música indie, exposição de Chagall e Kandinsky, cafés cult... Embora fizesse esse esforço para agradar, não omitia que não gostava de arte. Era coisa de gente inútil. Ele era um engenheiro, uma pessoa muito exata e não entendia o que tratasse de sentimentos - embora a arte também possa ser exata e técnica, feita com muita pesquisa e trabalho. Um simples romance, quando sério, não é escrito com facilidade. O autor pesquisa, esboça o argumento filosófico que pretende defender (se for o caso de defender alguma coisa) e monta a trama, os personagens, o enredo, os níveis de narração... O produto podem ser 200 páginas simples de ler e talvez nessa simplicidade é que se revelem o talento e o esforço.

Mas o marido não entendia e não gostava de arte.

Proibia-a terminantemente à esposa.

Ela se sentia infeliz. Não podia escrever a mão porque, se o fizesse, seria denunciada pela mancha de grafite ou tinta de caneta no punho esquerdo (era canhota). O jeito, então, era escrever no computador, mas não era a mesma coisa. Havia distância entre ela e o texto, havia frieza, havia muita facilidade para escrever, o que diminuía, aos olhos dela, o valor de seu texto.

Em todo caso, como era preciso escrever, ela escrevia.

Eram cartas embaladas em garrafas jogadas ao mar, bilhetinhos dobrados em formato de avião e jogados pela janela alta da cela em que vivia aprisionada.

Um dia, quem sabe, alguém leria, procuraria o endereço e a salvaria.

Ela não devia se apegar a salvadores - o problema fora justamente esse, ele fora um salvador e a aprisionara - devia ser a woman of her own, mas era difícil, talvez ela não quisesse tanta responsabilidade consigo mesma.