(Para Barbara Lampert, que sem saber me deu o mote.)

Desliga, que tá chovendo!...


A mania de contador de histórias e estórias realmente não me larga. Sorte minha, pois isso me diverte. A motivação inexplicável, quase compulsiva, para buscar retalhos de memória e costurá-los em forma de relatos é algo que me fascina. Faço-o mais por diletantismo, prazer bem aconchegado ao egocêntrico eu.
 
Descobrir como estradinhas do passado cruzam veredas do hoje, trazendo antigas palavras manuscritas, que encontram irmãs digitais e se abraçam bem íntimas, dentro de uma rede virtual, é coisa agradável como jardim de metrópole exalando cheirinho de sertão molhado por chuva recente.
 
E foi a chuva que me inspirou esse relato: uma chuva Bárbara – como se dizia no sertão onde nasci. Explico já o “B” maiúsculo iniciando o nome adjetivado. O mote veio de frase lida agorinha numa rede social. Bárbara Lampert escreveu assim:
 
“[...] minha mãe gritando... desliga o computador, está trovejando... hahaha”.
 
A frase encontrou irmã gêmea no meu passado e seguiu de mãos dadas com lembranças da minha agradável infância. Fui rapidinho a um tempo já desprezado por poucas décadas, quando então se ouvia, entre retumbares de trovões assustadores, advertências apressadas indicando perigos iminentes:
 
“Corre, menino, desliga a televisão, que tá chovendo!... Vai ligeiro! Cuidado, te calça, senão leva choque!...”   
 
E eu corria, calçava a sandália de borracha, desligava o televisor e voltava à janela que dava para a rua, atento a cada detalhe do espetáculo da chuva, surpreendido com canhões disparados pela natureza céu abaixo, que logo ressoavam no vale e corriam em forma de eco morro-acima, nos rumos da serra.
 
Meu pai já me ensinara que o perigo vem com os raios, não com os trovões, que são consequentes. Os para-raios na minha cidadezinha eram dois ou três. Descargas elétricas poderiam realmente causar problemas no povoado e fora dele, embora jamais alguém tenha relatado qualquer acontecimento mais sério do que eventuais árvores chamuscadas em pastos abertos.
 
De tanto ser repetida a advertência precavida, foi-se criando na minha rua a cultura e mito em torno do tema. Ora, ouvia-se “desliga a televisão!...”, ora gritava-se “desliga o rádio!...” e de casas vizinhas o vento da chuva trazia vozes alertando também:
 
“Apaga as luzes, que relampejando muito!...”
 
Criava-se na comunidade a mania do desliga isso, fecha aquilo, apaga nem sei quê. Parecia que dava status contar nas calçadas, uma vez passadas as chuvas, as decisões tomadas e as providências adotadas em cada casa. Toda  família tinha um herói simplesinho, que na hora do trovão e do raio vestia-se de salvador da pátria e corria pela casa, de aparelho a aparelho, cumprindo o ritual de proteção.
 
Novidade mesmo surgiu quando uma família rica comprou fogão a gás, dotado de acendedor automático. Coisa de última geração, de chamar vizinho prá ver; tanta novidade representava o eletrodoméstico vindo da capital, depois de trazido de muito mais longe... Casas vizinhas à minha passaram a conhecer mais um avanço tecnológico e ganharam um sonho de consumo: o fogão da dona fulana, que também se ligava à tomada elétrica. “Uma beleza!”, como dizia minha amada mãe.
 
Se de um lado da vizinhança morava a rica, do outro fazíamos fronteira com a invejosa: uma senhora presunçosa, que tinha mais olhos para os bens materiais dos outros que para as vestes ousadas das próprias filhas – por sinal adoráveis!... Tanto de ver quanto de ouvir.
 
Mesmo sem possuir determinados aparelhos, a invejosa costumava desprezar a inteligência dos que conheciam seu modo sacrificado de vida e gritava alto nas horas de chuvas:
 
“Chega, menina, desliga esse gravador... Desliga a eletrola!...”.
 
E por aí seguia, sempre tentando dar a entender que possuía eletrodomésticos modernos como os tinha a discreta ricaça da nossa rua. Quem os tinha, calava-se. Quem sonhava em tê-los, calava-se. Quem não os poderia adquirir, fanfarronava-se!... Era assim com a invejosa. 
 
O disse-me-disse corria as calçadas, mas a discrição das pessoas educadas não jogava desmentido na cara de ninguém, mesmo que alguém o merecesse. Fingia-se acreditar que as posses eram verdadeiras, em prol da manutenção das boas relações de amizade e vizinhança. Não muito diferente do que ocorre hoje em tantas comunidades de perto e de longe.
 
O mundo esqueceu, porém, de dar bons modos e língua curta a certos moradores do lugar; e um destes era meu pai, a quem a mentira, por menor e mais inocente que fosse, ofendia e incomodava.
 
Certo dia de chuva o acaso juntou todos os fatores que não se recomendaria por numa mesma mesa – melhor dizendo: numa mesma calçada, depois de uma chuva que seria a primeira de uma fila que vinha do nascente, arrastada por nuvens pesadas.
 
Num instante de trégua, depois de raios e trovões, tempo aberto, um instante sem pingo novo caindo, familiares chegando às portas, esfregando vassouras no chão das calçadas, comentando isso e aquilo do momento da chuva, quando, repentinamente, trovões, trovões fortes e mais fortes, relâmpagos e conclusões bem óbvias: todos para dentro de casa, que lá vem chuva grossa!...
 
Vizinhos prontos a voltar aos abrigos familiares. A rica, calada, as outras, caladas. A invejosa, sem conter a língua de trapo:
 
“Vai, minha filha, desliga o gravador!... Desliga o fogão, desliga o fogão também, que eu ia esquecendo!...”
 
Breve silêncio. Olhares se cruzam. Bocas se calam. Paciência tem limites, e havia ali um homem (meu indiscreto pai) que não tolerava mentiras:
 
“Deixa de ser besta, sua invejosa!... Teu fogão é a lenha. É melhor desligar tua língua, senão dá curto-circuito no teu cérebro de burra!...”
 
O último ato dessa constrangedora cena, caro leitor, eu entrego à sua capacidade imaginativa. Sou obrigado a parar por aqui: vou desligar o computador, está trovejando. Se a Bárbara não me avisa...