OS COLECIONADORES
Há pessoas que colecionam frases e pensamentos como se fossem borboletas mortas, folhas murchas e sem vida com as quais se marcam as páginas esquecidas de livros que nunca terminam de ler. São os colecionadores de coisas inanimadas que perigam transformar-se nelas atravessando o tempo exalando tristeza e desolação.
Lembro-me de um livro que nunca terminei de ler cujo título era “Hei de Vencer”. Durante muitos anos deixei aquela capa voltada para mim na pequena escrivaninha imaginando que repetindo aquelas palavras diariamente eu chegaria a realizar todos os meus sonhos. A vida ensinou-me que palavras inanimadas nada podem transformar; e que eu deveria criar as minhas infundindo-lhes vida através do esforço constante por compreender-me e o que me cerca, e realizar a impostergável tarefa do aprendizado diário.
Repetir palavras sem vida é uma tarefa triste, inútil e sem esperança.
Lá pelos idos de 1968 ganhei de presente “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caieiro, o misterioso heterônimo de Fernando Pessoa.
Tio Paulo de Lima presenteou-me a obra que habitara sua biblioteca por muitos anos numa daquelas frias e úmidas noites paulistanas de julho em sua casa à Rua Arthur de Azevedo. Era uma terceira edição datada de 1958 realizada pela Editora Ática de Lisboa que ele havia comprado na livraria Pedro Siciliano da Rua Dom José de Barros. Eu era um jovem que gostava de ler e o presente especial, do acervo pessoal daquele velho homem apaixonado pela vida e a literatura. Devorei a obra no dia seguinte, mas a página 23 do “Guardar de Rebanhos” fixou-se para sempre em minha recordação. Havia uma flor seca e esmagada entre as páginas 22 e 23 onde o poeta dizia:
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela Estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda pelo campo
E triste como esmagar flores em livros
E por plantas em jarros.
Ao olhar e tocar aquela seca flor esmagada que até hoje está ali em meu pequeno livro, senti a angustia de Cesario Verde, um preso em liberdade a andar pela cidade onde tantas vezes se tem a impressão de que tudo é falso, artificial, antinatural.
Fernando Pessoa – na voz de seu mestre-heterônimo Alberto Caieiro – faz-nos refletir sobre a inutilidade de colecionar coisas mortas, palavras sem vida, conhecimentos inanimados.
No instrutivo livro “Diálogos”, do pensador Carlos Bernardo González Pecotche, em seu colóquio de número 31, diz o autor:
“Uma coisa é aprender pelo mero fato de saber algo novo, e outra, quando o saber é empregado para alcançar uma efetiva superação. No primeiro caso, os ensinamentos viriam a ser como as borboletas que anunciam o bom tempo, alegrando o campo florido das ilusões com o vistoso colorido de suas asas delicadas e graciosas. É fácil tocá-las e mais fácil ainda deleitar-se com elas, espetando depois seu pequeno tórax para colecioná-las sobre um cartão opaco”.
“Todavia, enquanto se faz isto, o tempo bom que elas anunciaram vai passando sem ser aproveitado, perdendo-se assim oportunidades difíceis de recuperar.”
“Consideremos, então, que enquanto os conhecimentos se mantêm ativos em alguns, aproveitando com eles o bom tempo, em outros permanecem estáticos como as borboletas que jazem espetadas na cartolina do colecionador”.
Nagib Anderáos Neto
neto.nagib@gmail.com