Algumas saudades  do que vivi



 
                                      
                                                       Hoje,  amanheci com vontade de falar de mim e de  pessoas que  por uma razão ou outra me marcaram para sempre.  E elas surgem no atropelo, sem muita lógica, como uma onda do mar, me dando um banho frio e revigorante. Vem  logo à minha mente o Miguel Vovô, remador do Vasco, preocupado em ter boa saúde física e mental, fazendo as ginásticas do Charles Atlas e lendo  “a arte de fazer amigos.” Rapaz trabalhador, ajudava o pai num bar de Copacabana ,na  rua Siqueira Campos, sempre me oferecendo um copo de leite, quando por lá passava suando em bicas, de tanto andar de bicicleta, na minha maratona Botafogo-Leblon-Ipanema e Copacabana às quatro da manhã para evitar o tráfego.   E aquela moça rica, que mal conhecia, sempre bem vestida, um dia, horrorizada, me perguntou o porquê de eu  só usar a camisa pra fora da calça. E o Romeiro Neto, rapaz calado e sempre sério foi, sem saber, quem me arrancou minha melhor gargalhada, que jamais esqueci. Na aula de filosofia, livro aberto na sua carteira escolar, o título do texto era: Bucólicas, não me lembro mais se era do poeta romano Virgílio. Pois não é que o Romeiro, sempre sisudo, tinha riscado com a caneta a primeira sílaba da palavra e lá estava, somente no livro dele,  lógico, em  letras graúdas: CÓLICAS.  E falando em filosofia, passei a amar esta matéria, pois foi um encantamento para mim as aulas do Professor Lemos. Adolescente ingênuo, pensava que o professor tinha o segredo da vida e não entendia porque a maioria dos alunos não gostava de filosofia.  O Cézar Oiticica, o expoente do ginásio. Nosso colégio estava decadente e perguntei ao Oiticica porque ele não estudava em um colégio melhor, já que ele era um aluno excepcional. Veio a resposta rápida: “posso estudar num colégio ruim, porque o aluno é quem faz a escola.” Soube depois que a família era de gênios, seu avô, o maior gramático de sua época, o grande José Oiticica. Seguiam a filosofia anarquista, não acreditavam em governo nenhum e muito menos em escolas, sabiam se autodeterminar.  Que exemplo de independência! Quem sabe não está aí a chave para mudar o mundo. Pensar em mudar o mundo é bobagem, se antes eu não me mudar, dizem os mais sábios.   Os  inspetores de turma, Ruy e Raimundo.  O Ruy era o bom. Raimundo, o mau. Eram irmãos e tão diferentes. Podíamos chegar atrasados na primeira aula, apenas uma vez na semana. Quando me atrasava pela segunda vez, na mesma semana, jogava minha pasta por cima do muro,  e esperava alguns segundos. Se a  mala viesse jogada de novo para a rua, não tinha jeito, era o Raimundo quem estava do outro lado da mureta. Se a pasta não voltasse, ato contínuo pulava eu o muro, pois sabia que do outro lado estava o Ruy, o bom,  fingindo que não estava vendo, e eu sorrateiramente penetrava na sala de aula, que alívio! O Luís Affonso, que quase brigou comigo quando soube que eu e mais cinco colegas  tínhamos sido suspensos por uma semana inteirinha.  Denúncia do Raimundo, o mau! Seguinte: há um mês que eu estava liderando um movimento de rebeldia, achando que nós, adolescentes, nos aproximando dos dezoito anos, na verdade estávamos entre 16/17 anos, poderíamos sair do colégio na hora do recreio e tomarmos um cafezinho no bar da esquina, abandonando o colégio, pois, afinal, já tínhamos responsabilidade. Imediatamente, Mário Fulgêncio, Carlos Eduardo Jardim, Miguel, Mozart e Oscar toparam. O Luiz Affonso não estava presente nesta hora e ficou de fora do plano. Aproveitando um cochilo dos inspetores, num piscar de olhos nos encontrávamos no bar, tomando aquele cafezinho, quando surge a figura sinistra do Raimundo, com papel em punho e mais a  caneta e gritando: peguei vocês, já estou anotando: Gilberto Dantas, Mário Fulgêncio, Jardim, Mozart , Miguel e Oscar. Podem se apresentar ao Diretor. Resultado: uma semana de praia forçada, pois saíamos de casa como se fossemos para o colégio, com aquele medo dos pais desconfiarem. Já o Luiz Affonso, filho de psicanalista, gozava de uma educação libertária, que começava a ser moda naqueles tempos,  para ele seria uma  boa aquela semana de férias e sem precisar esconder do pai esse fato, que gostoso!  Ah! não poderia deixar de me lembrar da Heloísa. Sentava-se na carteira em frente da minha. Loura, muito bonita, espírito muito alegre, vestidos sempre decotados e costas nuas. Era irresistível, passava as aulas todas coçando as suas costas e muitas vezes, no ouvidinho dela contando piadas picantes. É preciso entender, afinal estava com 17 anos, testosterona à flor da pele, gente! E, a bem da verdade, não havia má intenção, o que eu queria era só brincar. E ela, garota legal, ria muito, não me dava lições de moral. Acabei deixando essas brincadeiras “inocentes” de lado, quando um dia soube que a Heloísa tinha um noivo, bem forte, com seus 25 anos. O medo falou mais alto, o melhor era não arriscar. E a Eley, irmã do Luiz Affonso, o filho do psicanalista, muito preocupada com sua magreza, tomando toddy todo dia. Não fiz por menos, comprei para ela um latão de 10 quilos de toddy. Não adiantou, continuou magra. O meu primeiro namoro sério com a moça dos olhos verdes, na praia do Arpoador. A minha expulsão no baile de carnaval, no famoso Bola Preta,  com apenas  dez minutos de permanência. As noitadas com os colegas, tomando “Cuba Libre” e falando de mulheres, na minha casa, aproveitando a ausência de meus pais. E meu pai recomendava sempre: - “Não traga seus colegas aqui pra casa, hein?”

                            E onde eu fiquei nessas recordações todas, estacionei em algum atalho? Ou mesmo errando os caminhos, acabei chegando onde deveria chegar? Onde está aquele Gilberto, que aos dez anos sentiu a responsabilidade de se dedicar a uma religião e se tornar um condutor de almas? Que depois de  adulto provou de todas as teorias sobre o homem e não seguiu nenhuma. Que para não desagradar os outros não diz o que realmente pensa da vida. Que não tem nada pra ensinar, mas gostaria muito que a humanidade já estivesse num grau bem mais avançado. Onde fiquei? Onde ficaram as pessoas que amei?
                            Qual o sentido dessas doces recordações, às vezes me pergunto, e não encontro respostas. Servem para alguma coisa? Iluminam o meu caminho? Minhas amigas e amigos sentiriam alguma graça, alguma orientação para suas vidas, alguma ternura? Sinto que essas lembranças e muitas outras mais, para o bem ou para o mal, jamais me deixarão,  porque já fazem parte do meu ser. E a vida continua a ser um grande mistério, restando-me o consolo de que na maior parte do meu tempo de vida fiz o que gostava de fazer, mesmo cheio de dúvidas. Acabamos fazendo o que gostamos e sempre vi a famosa  razão sumir na primeira esquina, por não poder  explicar nossas paixões...