Imagem retirada do livro Meninas Negras (Madu Costa)
A amizade tem todas as cores
Vendidas as poucas cabeças de gado, nos mudamos da Beira da Serra. Meu pai resolvera abandonar a vida de lavrador e abrir um pequeno comércio na beira de uma estrada, noutra região do município.
A venda era sortida. Tinha desde o sal de cozinha até cortes de tecido, querosene, Cibalena, Passajá -para dor de dente-, lâmina de gilete, fumo de rolo, Leite de Rosas, lamparina, marmelada, sardinha em lata, cachaça, bacias para banho, botinas. Havia também garrafas de guaraná, daquele que se furava a tampa com um prego, cujo sabor ainda tenho na memória.
As crianças adoravam um conjunto de vidros que ficava no balcão. Dentro havia balas, pirulitos e aneizinhos de pedras coloridas.
A vida seguia... Meu pai cuidava da venda, mamãe cuidava dos filhos e costurava para as mulheres das fazendas vizinhas.
Na região havia uma comunidade formada por descendentes de escravos. É provável que o lugar fosse um antigo quilombo, denominado “Furão”. Ali ainda moravam muitas famílias que se sustentavam trabalhando para os fazendeiros. Na venda trocavam feijão por querosene, sal e sardinha. Eram muito pobres e ainda sofriam preconceito por parte dos brancos.
Influenciada pelas vizinhas, mamãe acreditou serem feiticeiras, as remanescentes do quilombo. Nunca me deixava ir naquela direção. Eu só visitava as meninas brancas. O que ela nunca soube é que essas “amigas” me levavam para um quintal onde havia uma cisterna sem tampa. Brincando de casinha, mandavam-me subir na beira do poço e puxar água num balde preso por uma corda. Ingênua, nunca percebi o perigo quando via meu reflexo lá no fundo.
As meninas pretinhas, filhas de uma empregada da fazenda me vigiavam de longe, escondidas atrás das árvores. Nunca chegavam perto.
Um dia, ouvi assustada a proposta das “amigas”:
–Ô Mariinha, si ocê quisé brincá aqui em casa, tem qui pulá do outro lado da cisterna sem tampa...
–Ieu sô piquena, tenho medo de caí lá no fundo...
–Ocê iscói, pula ô vai imbora daqui.
–Podexá! Ieu pulo.
Lembro-me muito bem disso. Quando armei o pulo senti alguém segurando firme meu braço. Era a Cida!
–Bamu simbora Mariinha, essas minina qué machucá ocê.
Cida e as irmãs me levaram dali e avisaram às outras:
–Nunca mais ocêis faiz isso cum ninguém! Sinão nóis vai pidi à vó Arminda, pa modi infeitiçá ocêis tudo. Vão ficá tudo preta qui nem carvão.
A partir daquele dia conheci amigas de verdade. Descobri um mundo novo. Ali no "Furão", havia mais de vinte casinhas de capim, onde viviam várias famílias. Era um povo amistoso, bem humorado, contador de causos.
Dona Rita e seu Nicanor eram seus pais. A casinha deles era linda! O fogão à lenha e o chão eram limpinhos, rebocados de tabatinga branca. As panelinhas de ferro brilhavam no jirau, secando ao sol.
Havia uma horta de couve cercadinha com bambu. Canteiros de alface, couve, cebolinha, pimenta... Um jardinzinho de rosas, jasmins, dálias. Uns pés de laranja e mexericas docinhas.
Água para beber buscavam na mina do barranco, entre as samambaias. Para lavar roupas havia logo abaixo, uma laje grande e lisa, enterrada na areia clara de um riachinho. Muitas pedras nas margens, arbustos e capins rasteiros serviam como quaradouro.
Dona Rita fazia óleo de coco macaúba, um poderoso remédio contra a tosse. Usava-o também no cabelo das filhas e no meu antes de pentear e fazer tranças . Fez para mim também muitas bonecas de pano iguais as de suas meninas.
Aquela gente, sem ninguém saber, fez parte de minha infância por quase dois anos. Até nos mudarmos dali. Seu modo de ser sem preconceitos povoou meus dias.
Aprendi uma gama enorme de ensinamentos muito mais importantes que muitas pessoas conseguem entender. Sua amizade era verdadeira e terna, seus caminhos retos.
Passaram-se muitos anos... Não sei que rumo tomaram aqueles pezinhos descalços das meninas pretinhas, minhas queridas amigas de infância.
*Dedico à Cida, Irene, Marlene e Diva. Onde quer que estejam.
Este texto faz parte do Exercício Criativo. Leiam os outros autores, acessem o link:
http://encantodasletras.50webs.com/diversidade.htm
A amizade tem todas as cores
Vendidas as poucas cabeças de gado, nos mudamos da Beira da Serra. Meu pai resolvera abandonar a vida de lavrador e abrir um pequeno comércio na beira de uma estrada, noutra região do município.
A venda era sortida. Tinha desde o sal de cozinha até cortes de tecido, querosene, Cibalena, Passajá -para dor de dente-, lâmina de gilete, fumo de rolo, Leite de Rosas, lamparina, marmelada, sardinha em lata, cachaça, bacias para banho, botinas. Havia também garrafas de guaraná, daquele que se furava a tampa com um prego, cujo sabor ainda tenho na memória.
As crianças adoravam um conjunto de vidros que ficava no balcão. Dentro havia balas, pirulitos e aneizinhos de pedras coloridas.
A vida seguia... Meu pai cuidava da venda, mamãe cuidava dos filhos e costurava para as mulheres das fazendas vizinhas.
Na região havia uma comunidade formada por descendentes de escravos. É provável que o lugar fosse um antigo quilombo, denominado “Furão”. Ali ainda moravam muitas famílias que se sustentavam trabalhando para os fazendeiros. Na venda trocavam feijão por querosene, sal e sardinha. Eram muito pobres e ainda sofriam preconceito por parte dos brancos.
Influenciada pelas vizinhas, mamãe acreditou serem feiticeiras, as remanescentes do quilombo. Nunca me deixava ir naquela direção. Eu só visitava as meninas brancas. O que ela nunca soube é que essas “amigas” me levavam para um quintal onde havia uma cisterna sem tampa. Brincando de casinha, mandavam-me subir na beira do poço e puxar água num balde preso por uma corda. Ingênua, nunca percebi o perigo quando via meu reflexo lá no fundo.
As meninas pretinhas, filhas de uma empregada da fazenda me vigiavam de longe, escondidas atrás das árvores. Nunca chegavam perto.
Um dia, ouvi assustada a proposta das “amigas”:
–Ô Mariinha, si ocê quisé brincá aqui em casa, tem qui pulá do outro lado da cisterna sem tampa...
–Ieu sô piquena, tenho medo de caí lá no fundo...
–Ocê iscói, pula ô vai imbora daqui.
–Podexá! Ieu pulo.
Lembro-me muito bem disso. Quando armei o pulo senti alguém segurando firme meu braço. Era a Cida!
–Bamu simbora Mariinha, essas minina qué machucá ocê.
Cida e as irmãs me levaram dali e avisaram às outras:
–Nunca mais ocêis faiz isso cum ninguém! Sinão nóis vai pidi à vó Arminda, pa modi infeitiçá ocêis tudo. Vão ficá tudo preta qui nem carvão.
A partir daquele dia conheci amigas de verdade. Descobri um mundo novo. Ali no "Furão", havia mais de vinte casinhas de capim, onde viviam várias famílias. Era um povo amistoso, bem humorado, contador de causos.
Dona Rita e seu Nicanor eram seus pais. A casinha deles era linda! O fogão à lenha e o chão eram limpinhos, rebocados de tabatinga branca. As panelinhas de ferro brilhavam no jirau, secando ao sol.
Havia uma horta de couve cercadinha com bambu. Canteiros de alface, couve, cebolinha, pimenta... Um jardinzinho de rosas, jasmins, dálias. Uns pés de laranja e mexericas docinhas.
Água para beber buscavam na mina do barranco, entre as samambaias. Para lavar roupas havia logo abaixo, uma laje grande e lisa, enterrada na areia clara de um riachinho. Muitas pedras nas margens, arbustos e capins rasteiros serviam como quaradouro.
Dona Rita fazia óleo de coco macaúba, um poderoso remédio contra a tosse. Usava-o também no cabelo das filhas e no meu antes de pentear e fazer tranças . Fez para mim também muitas bonecas de pano iguais as de suas meninas.
Aquela gente, sem ninguém saber, fez parte de minha infância por quase dois anos. Até nos mudarmos dali. Seu modo de ser sem preconceitos povoou meus dias.
Aprendi uma gama enorme de ensinamentos muito mais importantes que muitas pessoas conseguem entender. Sua amizade era verdadeira e terna, seus caminhos retos.
Passaram-se muitos anos... Não sei que rumo tomaram aqueles pezinhos descalços das meninas pretinhas, minhas queridas amigas de infância.
*Dedico à Cida, Irene, Marlene e Diva. Onde quer que estejam.
Este texto faz parte do Exercício Criativo. Leiam os outros autores, acessem o link:
http://encantodasletras.50webs.com/diversidade.htm