Torre de marfim

Os pezinhos descobertos, expostos ao relento faziam-no imaginar como seria o restante daquele pequeno e frágil corpo que não teria mais de dois anos de idade. Pezinhos negros, de plantas ressequidas, muito alvas, acinzentadas, imóveis, túrgidos. O corpinho, coberto pelo lençol fino, completamente envolto, de modo que o pano não voasse em meio à ventania incessante que fazia aquela madrugada muito mais fria do que realmente deveria ser.

Tudo à volta parecia deserto, desolado: pessoas deitadas ou sentadas em pedaços de papelão estirados às calçadas, abrigando-se no recôndito das entradas dos comércios cujas portas fechadas serviam de apoio às costas fatigadas. Olhava-se no entorno e custava-se a crer que aquelas ruas tão barulhentas, quentes e frenéticas durante o dia pudessem dar espaço àquele cenário apocalíptico: vazio, frio e abandonado.

Eles eram párias, filhos do rejeito. Marginalizados por todos e por si, durante o dia se confundiam com os cenários mais grotescos de algumas das menos afamadas ruas: deitados no chão, pedindo esmolas, vagando sonambulamente pelas ruas, tal qual zumbis, pedindo algum trocado, ou mesmo em trabalhos menores: carroceiros, catadores, guardadores de carros, vendedores dos seus próprios furtos, dos seus próprios corpos, aviõezinhos... Faziam tantas coisas, assumiam tantas formas...

As pessoas passavam por eles, algumas com medo, outras receio, não raramente alguém com nojo lhes cruzava o caminho. Alguém com sincero e franco nojo de uma outra pessoa essencialmente tão humana quanto a si que, como se não bastasse a expressão de horror assumida, virava-lhes a cara, como a fugir de algo, a socorrer-se.

Mas era exatamente ali, nas ruas abandonadas, durante a madrugada, em meio ao relento, que eles podiam, de alguma forma, sobreviver. Podiam, de alguma forma, defender-se do resto do mundo que, aparentemente, lhes dera as costas. Podiam, enfim, recostar as cabeças contra os portões gélidos dos comércios, ou contra a fria calçada ou mesmo contra o duro e defeituoso banco de praça, fechar os olhos e dormir, não em paz, que para muitos era elemento exclusivo da ficção. Mas dormir, enfim, da forma que lhes fosse possível, o quanto lhes fosse possível: logo seria dia e recomeçaria o frenesi nas ruas e calçadas.

Os pezinhos moveram-se rapidamente, estremeceram. Foi-lhe uma espécie de alívio, há tanto tempo os via imóveis que pensara absurdos, como estivessem mortos, por exemplo. Aqueles pés lembravam-lhe os pés do seu próprio filho: pés quentinhos, limpinhos, que àquela hora certamente estariam recolhidos a uma cama própria, ligeiramente maior que a nesga de papelão na qual se encontravam aqueles pezinhos de rua, e indubitavelmente mais confortavelmente instalados.

Sentiu-se mal, pois, de algum modo, reconhecia-se como parte de tudo aquilo. Reconhecia-se como elemento indissociável daquele cenário abominável. E fazer-se presente ali, àquela hora, apesar de parecer-lhe uma forma de ajudar o próximo, nada mais era que um meio de tentar resgatar uma diminuta parte de tudo aquilo que já fizera consigo, com seu filho, com aqueles que o rodeavam, com os pezinhos de rua – agora tremelicando ao sabor das fortes rajadas de vento – com os que haveria de conhecer, com aqueles que dariam sucessão ao mal fadado mundo que deixaria após sua morte. Não era mais senão uma maneira de tentar quitar um débito antigo e crescente. Era uma inundação de consciência, e certamente por isso sofria tanto: era-lhe tão bom saber e fazer-se ignorante. Mas agora não podia. Como fazer-se ignorante perante tal situação, os pezinhos ali tremendo, exigindo-lhe atenção; os demais como que jogados ao relento, esperando sem qualquer ansiedade que rompesse a aurora no início de um novo dia: para quê?

Saber de tudo isso, sentir um pouco de tudo isso doía-lhe profundamente. Ora, não devia condoer-se com os males do mundo. Não era o dono do mundo, ou mesmo seu gestor: as folhas das árvores caiam sem que disso tomasse ciência, não tinha a remota ideia de quantos fios de cabelo habitam a cabeça de um homem, qualquer que fosse. Porque teria, então, de assumir tamanho encargo, se nada, nada mesmo, era-lhe de sua responsabilidade. Crianças e adultos abandonados às ruas existem aos montes; dependentes químicos que optaram por viver na sarjeta apareceriam todos os dias, à revelia da sua vontade; bêbados, prostitutas, depressivos passariam a viver nas ruas das grandes cidades invariavelmente, e, mesmo consciente de tudo isso, sofria.

Entendia-se agora não como um mero conhecedor superficial dos tipos que nas ruas habitavam, mas sentia-se um tanto responsável por aquela opção, aquele caminho seguindo por tantos. Entendia perfeitamente que também participava, mesmo que indiretamente, de toda aquela trama, de todo aquele enlace social que resultava na exclusão, na marginalização daqueles membros da sociedade.

Por isso, sentiu-se um deles. Era o que era, afinal. Sabia-se que, em um momento ou outro, estaria naquelas ruas, dormindo ao relento, cedendo o farrapo que possuía para que alguém menor, mais frágil, pudesse se proteger, mesmo que precariamente, da noite nada amistosa, enquanto que seu corpo, anestesiado do frio, do cansaço, da fome e da demência, resvalaria sobre uma nesga qualquer de papelão; enquanto trajava farrapos que lhe cobrissem mesmo que precariamente as vergonhas; enquanto, aos tropeções nos próprios pés, vagarosa e doentemente se arrastaria a perto daqueles que com compaixão lhe estenderiam um copo de sopa, um copo de água, um ou dois pães, mas que, além disso, ofereceriam o melhor sorriso que o pudessem, pegariam na sua mão, como se estivessem a pegar na mão de um ente vivo, de uma pessoa, e escutariam aquilo que lhe fosse de intento pronunciar. Escutariam, aconselhariam, entenderiam? Talvez nem ele mesmo se entendesse àquele momento, ele que já fora gente e não se via mais dessa forma. Ele que demorava alguns minutos para entender aquilo que o diziam ou perguntavam: família, fome, fé.

Droga!

...

...

A vivência do dia a dia, a correria dos nossos afazeres, o mecanicismo com o qual lidamos com aquilo que nos cerca todos os dias, tudo isso nos cega para a realidade, a verdadeira realidade, aquela que preferimos, conscientemente ou não, desconhecer.

Apesar de extremamente perigoso, é bom sair da Torre de Marfim. A vida não é aquilo que se vive diariamente, mas aquilo que se viveu, que se vive e que se viverá, um dia, de modo ignoto, talvez severo. Sentir-se no outro é sentir uma dor que nos faz crescer, conquanto sintamos essa dor de olhos bem abertos, conscientemente.

Hylo Leal

Hylo Leal
Enviado por Hylo Leal em 24/06/2012
Código do texto: T3742718
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