Ruptura





Finalmente em casa. Se é que se podia chamar aquele cubo branco de casa. Algo totalmente funcional, que apenas cumpria a função de proteger contra intempéries, e como contenção para a fúria e para desejos frustrados.
A porta se fechou atrás de Adriano, e estava ele oficialmente  isolado da turba de cretinos do trabalho e das pessoas sem nome com quem era obrigado a cruzar pela rua. Estava exausto, e com a nítida sensação de que nada iria além dessa repetição tediosa. De seu casulo para o trabalho, do trabalho para casa. E nos fins de semana, talvez alguma diversão com algum corpo disponível. Que fatalmente viria acompanhado de alguma ressaca e a sensação de angústia de sempre.
Adriano se sentou em seu sofá branco, arremessando bem longe seu paletó. Lembrou-se que aquela rachadura no teto poderia aumentar  caso não tomasse alguma providência. E sendo ele um dos seres mais criativos para a desgraça que já pisou sobre a terra, imaginou logo aquela  rachadura se abrindo repentinamente, fazendo com que todos os andares superiores viessem dar em sua sala. Certamente morreria com o peso de alguma gorda que cairia sobre a sua cabeça. Mas as providências ficariam para depois. Naquele momento, ele queria apenas sentir um pouco mais de ódio de seu chefe e pensar nas curvas escandalosamente vistosas de sua colega de trabalho. Sonhava mesmo em castigar aquelas carnes na cama, ao ponto de fazer aquele corpo desmaiar. Bem, isso era fácil de solucionar, entretanto. Bastava descansar um pouco e se resolver mais tarde no banheiro.
Foda-se o mundo. Foda-se o que todos pensavam sobre a felicidade. Adriano sabia que aquela felicidade não era para ele. Porque ela implicava em se conformar com filhos com os quais não se identificaria, uma esposa moldada pela normalidade e um trabalho que vez ou outra, invadiria a sua noite, através de uma ligação justamente no momento em que estaria fodendo sua esposa-vadia. Não, essa felicidade era totalmente dispensável.
Sentado no sofá, o estômago reclamava por alguma comida. Certamente seria alguma coisa congelada, que prontamente arremessada no microondas, faria mais estrago no seu corpo do que um envenenamento imediato. Maldita barriga...não importa o quanto se exercitasse, ela permanecia lá impávida...certamente espantando possíveis candidatas à reprodução.
Adriano  olhava novamente para a rachadura. O apartamento perfeito, gelado e branco. Mas estragado por aquela imperfeição  que depunha contra a simetria de sua vida. Como podia um homem, que sabia dar vários nós em sua gravata, sabia qual o melhor vinho para acompanhar  uma truta e ainda manter seu ar de androide mesmo diante das maiores crises, não ter ainda se livrado daquele defeito no teto?
Claro que os livros lidos pela metade na estante não poderiam ajudar. Nem talvez os conselhos enviesados de seus amigos de bar que tinham a solução para a crise econômica e para irritações na virilha. Restava aquele resumo de frustração. Uma vida tão perfeita para quem observava de fora...e o prenúncio da ruína que se manifestava numa rachadura deselegante.
De repente, o ar se tornou irrespirável. O peso daquele cubo feito para conter a individualidade ficou insuportável. O grito era dentro do peito. E dizia: há alguém aí? Há uma saída daqui?
Adriano olhou em volta. Odiou profundamente aqueles objetos sem vida que o rodeavam. Eram vasos brancos e com um bom gosto  nauseante. Seus eletrônicos cuja aparência tornavam o apartamento um painel de comando de disco voador. Eram as roupas dispostas perfeitamente nos armários, junto aos sapatos corretos. Era o telefone quase nunca atendido, que insistia em enfiar o mundo na sua reclusão, lembrando que ele não estava desligado da grande merda que é a organicidade da existência.
Angústia e dor, aos trinta e poucos anos, de uma vida cujo rumo foi desenhado por tanta gente...Adriano não era uma vida, e sim um projeto de várias mãos. Até seu corte de cabelo foi determinado pelo meio, para que se adequasse. Tudo recendia a nojo. A revolta. Afinal, que casa era aquela? Que livros eram aqueles. Que opiniões eram aquelas que tinha sobre tudo, apenas para não escandalizar a uma plateia ávida pelo contentamento.
Certamente, Mahler não teria a solução para toda aquela fúria. Mahler era só um grande chato, que enrabou Nietzsche. E a partir daquela hora, Adriano odiava oficialmente o compositor da melancolia da impotência. O  “Va Pensiero” passava a fazer mais sentido.
E a coragem brota de instantes de breu e escuridão. Ela surge quando viver se torna algo detestável. Algo cujo sentido está mais nos olhos dos outros do que na convicção de que se é um ser sólido e verdadeiro. E por isso, Adriano resolveu pegar sua mochila. Uma mochila antiga que não usou mais, pois estava fora de moda. Era a mesma que o acompanhou na faculdade, e em alguns momentos incríveis de sua vida. Colocou algumas roupas nela, sua carteira, e voltou a olhar apara a rachadura.
Naquele momento, o celular tocou. Era seu irmão cinco anos mais velho. O único ser no mundo que ainda mereceria alguma coisa próxima de amor. Relutante em atender, ainda assim atendeu. E do outro lado da linha, seu irmão dizia:
-velho, não sei o que me deu...você está bem?
-Acho que sim, Fred.
-Sério...senti algo estranho.
-Estou indo embora. Me cansei de tudo. Vou fazer o que sempre quis. Vou sair pelo mundo.
-Como assim cara?
-Desculpe, meu velho. Mas essa vida nunca foi pra mim. Venha comigo.
-Sempre meu irmão.
Todas as teorias e convicções filosóficas ficaram trancadas naquela caverna. O que era, afinal, o mundo de verdade?
Telefone desligado, Adriano olhou pela última vez a rachadura no teto. Saiu de seu apartamento, levando apenas o essencial. E junto de seu irmão, foram conhecer o mundo do único jeito que poderiam. Como dois canalhas ingênuos, num carro empoeirado.
 


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Para meu irmão
EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 24/06/2012
Código do texto: T3742171
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