Amigas Inseparáveis
Por mais irônico que possa parecer, a Santa Inquisição é tanto mais eterna quanto maiores foram os crimes e atrocidades por ela cometidos.
Por mais ignominioso que tenha sido, Hitler há de ficar por muito tempo ainda em nossas lembranças, por ter tido a capacidade de perpetrar o que não permitimos que caia no esquecimento. Há quem considere isso necessário, diante do que tem acontecido no mundo depois dele, como o bombardeamento de cidades e vilas no Oriente Médio, em que centenas de milhares de civis são sistematicamente assassinados.
Os mortos desaparecem e com eles as suas histórias. Que eles não podem contar. Nós é que temos de fazê-lo. Só que as histórias dos vivos, ou dos que podem ser responsabilizados pelas mortes de outros, assumem uma preponderância bem maior. Afinal a história é contada pelos vencedores, não pelos derrotados.
Depois da recente ocorrência de três crimes aqui no Brasil, particularmente em São Paulo, que deixaram a sociedade indignada e perplexa, passamos a nos interessar, o que não deixa de ser de certo modo inevitável, pela vida e história, pregressa e atual, de seus executores. Como está vivendo o casal Nardoni, cuja filha foi por eles jogada pela janela? Que assistência psiquiátrica vêm tendo? E Suzane Von Richthofen, a lourinha que planejou com o namorado e o irmão dele o assassinato dos próprios pais a pauladas? Quem ficou com a herança? Como está a aclimatação à vida carcerária da bela Elize, que matou e esquartejou o marido? Quem irá cuidar agora da sua filhinha? Perguntas que entendemos que precisam ser respondidas. Além de uma infinidade de outras que poderíamos sugerir.
A morte não é apenas uma derrota para as vítimas (aliás esse é o ponto de vista dos vivos) cujas vidas foram retiradas sob a forma de assassinato. Incluídos aqui os que pereceram nas guerras entre nações ou guerras civis/insurreições dentro das nações. É também uma derrota para os que permanecem vivos, porque são obrigados, sobretudo nos casos de assassinatos com nenhuma chance de serem justos (se é que um assassinato pode ser justo), a reconhecer a supremacia da morte diante da vida. No sentido de que de quem se foi, pouco ou nada se tem para contar. Em face do que se vai falar do responsável pela partida daquele que se foi.
O que tenho medo de conceber é que a morte nessas circunstâncias, sob a forma de assassinatos individuais/pontuais ou coletivos, nos casos de guerras e revoluções, ao longo do tempo acaba tornando-se justificável. Claro que esses crimes nos deixam indignados, perplexos. Seus autores são julgados e sentenciados. Vão para a cadeia, prisão perpétua ou são condenados à morte. Mas a impressão que tenho é a de que o crime “triunfa”, na medida em que preocupa-nos muito mais a própria ação e o(s) seu(s) executor(es) que os que perderam suas vidas. Quem sabe se não foi mais ou menos por esse caminho que se desenvolveu, pelo menos na parte inicial da narrativa, o notável romance Crime e Castigo, do inesquecível Dostoievsky? “Alimentando a idéia fixa de praticar uma ação significativa, que pudesse convertê-lo em alguém superior em qualidades, capaz de instituir profundas mutações sociais, Raskolnikov projeta, no âmbito de um terrível conflito interior, a morte de uma agiota, executando enfim o crime planejado”. Raskolnikov achou, portanto, plenamente justificável a morte da velhinha avarenta, cuja vida, no seu entendimento, para nada servia. Então toda a trama se desenvolve a partir do criminoso, sua vida intelectual (era um estudante e ministrava aulas de línguas), seus dramas pessoais, etc., ficando a figura da velha agiota num mero segundo plano. Ou assumindo, se tanto, a posição de elemento motivador do enredo.
Desse modo, a partir de crimes como os que aqui focalizamos, me assusta o reconhecimento de que a morte nunca esteve tão intrinsecamente ligada à vida. São definitivamente amigas inseparáveis. Só que com o predomínio assustador da primeira em relação à segunda.
Teresópolis, 24/06/2012
Dia de São João