Crime e idílio

– Você seria capaz de matar alguém?

Ao lançar a pergunta, que julgava por demais insólita, ela o observou de soslaio e pontuou a indagação com um tom precavido, desses que denotam hesitação quanto ao tema proposto para uma conversa. Receando a reação de seu par, esboçou uma risada mendaz e artificial, gorada no intuito de camuflar a gravidade que tal dúvida trazia consigo. Encontravam-se em meio a uma confraternização dominical no jardim da inquiridora, então repleto de familiares, embora o casal travasse palestra particular em uma mesa isolada dos demais. Uma vez posta a questão, ele não pôde deixar de sorrir levemente, de um sorriso pleno de satisfação. Surpresa, ela perguntou:

– Ora, mas o que foi?

– Pensava nisso ainda hoje. – respondeu ele com os dentes mantidos à mostra, posto preservasse certa circunspecção.

– Hoje? Quando? – e franzia o sobrolho.

– No banho, antes de vir para cá. – a revelação, que tornava manifesto o interesse mútuo pelo dilema moral, animou a ambos.

– Hum... e então? – ela estava sinceramente intrigada. Falava como quem se depara com uma encruzilhada e já não sabe proceder por si só. Após breve pausa, dele ouviu:

– Sendo direto e franco, a resposta é que eu realmente não sei. Você sabe mais do que ninguém o quanto é difícil me tirar do sério. – de fato, ele era um monólito de paciência e tolerância. Meditava tanto acerca da morte, em especial a sua, que havia tempos a tornara parâmetro para os próprios atos, malgrado os seus 23 anos: daí a rara capacidade de apequenar o trivial e manter-se amiúde sob a égide da sensatez. Prosseguiu: – Bem, há casos que visam à defesa, seja de si mesmo ou de outrem, e parecem contar com a anuência geral ou mesmo preservar traços de deliberação. Mas eu penso em outro mais radical, aparentemente desmedido, que nem por isso impede de gerar em mim algum grau de incerteza...

Deixou a possibilidade em suspenso, como se esperasse que a jovem descortinasse de imediato o mistério. No entanto, ela sequer tentou fazê-lo, tamanha a curiosidade em ouvir o restante da exposição. Fez um aceno para que ele revelasse qual seria, enfim, a dramática situação.

– Pois imagine presenciar o assassinato de alguém que você ama deveras. – por um segundo calou-se, a fim de ler no semblante da companheira o impacto da proposta. A reflexão parecia vir de alguém que ponderava sobre tópicos limítrofes com recorrência – Nós, por exemplo, desconhecemos até aqui a sensação de ter um filho, embora eu creia não haver outra comparável. Imagine quão doloroso e insano seria assistir ao homicídio de um dos seus e, perante a cena, ter a oportunidade única de vingá-lo. Veja bem, não afirmo de modo peremptório que mataria; digo "apenas" – fez um gesto simulando as aspas com os dedos – que uma eventualidade trágica como essa, à qual jamais experimentei ou anseio experimentar, colocar-me-ia diante de um impasse que teoria ou discurso algum é capaz de solucionar. Como disse, não sei se seria capaz, mas a resposta pertence a alguma dimensão que se afigura insondável e, em verdade, irredutível à mera filosofia. Um atentado contra um querido, toda a ira do mundo nas mãos, um possível lampejo de sandice – talvez o único de toda uma existência sóbria – e então descobriríamos.

Era inegável: ela se reconhecia em cada palavra. Fora apresentada à circunstância crítica que debalde buscara e, perscrutando agora em silêncio cada detalhe, chegara à mesmíssima conclusão - por mais estranho que fosse, era inexequível eliminar por completo de si a possibilidade de ceifar a vida alheia. Bastou um olhar para que o casal compreendesse a recôndita cumplicidade. Sabiam ainda que assumi-la, ao invés de dissimularem em nome de qualquer convenção, não significava outra coisa senão a genuína expressão do que há neles de mais humano. E assim, na descoberta íntima de dois assassinos hipotéticos, o laço de amor que os unia estreitou-se como jamais ocorrera até então.

Diego B Ramalho
Enviado por Diego B Ramalho em 23/06/2012
Reeditado em 27/03/2013
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