Com o Coração

Se os cronistas do passado estivessem ainda entre os mortais, certamente a sua agudeza de espírito identificaria nos acontecimentos últimos o aroma de um belo escrito. Enquanto os jornais dedicam páginas infindas às cifras que fizeram do autômato Ronaldinho o mais novo arauto da Gávea, uma figura cativante se retira dos gramados envolta pelos braços de suas pequenas filhas. É Washington, que pranteia diante do gesto singelo e do peso das palavras que tanto preferia adiar. Abismos separam nossos personagens. O primeiro, em dias de glória, eleva à categoria do irretocável cada um de seus movimentos em campo; retorna à pátria, contudo, recorrendo ao discurso de que busca no gigante rubro-negro uma tal motivação que há muito insiste em se ocultar. Quem sabe se ele procurasse no léxico do outro, um homem que, se não foi capaz de fazer da bola o seu pincel, preservou por trás de cada lance – do gol à canelada – uma contenda particular.

Os capítulos finais da trajetória de Washington merecem uma reflexão. E, como qualquer outra ventura permeada pela nobreza, a ocasião fez de sua morada um endereço inconfundível: a Rua Álvaro Chaves. Há no futebol certo prisma enigmático que me fascina e, aqui e acolá, insiste em vir à tona com força de tese metafísica. Alguém discordará, afinal, de que nos embates decisivos o desfecho costuma revelar alguma trama redigida alhures – e com tinta requintada? Basta observar a pelada em busca do troféu do bairro ou os minutos cruciais da Champions League! Ainda mais intrigante é quando o mistério resolve fazer de um mesmo jogador o seu veículo recorrente. Foi assim com Washington enquanto encarnou as cores do pavilhão tricolor, sob as quais experimentou tanto a derrota pungente quanto a sublimidade da consagração. Em verdade, apenas o seu esforço para jogar, lutando constantemente contra os prognósticos médicos, seria já suficiente para preencher algum sótão na memória do torcedor. Mas é curioso como tais estorvos viraram nota de rodapé no Fluminense: quando penso em Washington, recordo-me de alguns instantes áureos que hoje se confundem com a própria história do clube. Como esquecer a comemoração efusiva após inaugurar o marcador contra o São Paulo, legando à nulidade dos oito jogos anteriores o toque de detalhe? E foi naquela mesmíssima noite que presenciei, das arquibancadas do Maracanã, o gol que nasceu eterno e – como milagre – fez das lágrimas da eliminação o matiz da apoteose! Ora, quem assiste àquele tento com a frieza do analista não merece sequer adentrar um estádio. O que eu vi lá de cima foi Washington subir em meio aos três rivais com a História perpassando toda a sua ação. "Eu sabia que eu 'tava' iluminado!". Hei de guardar aquele momento como prova de que, se há quem duvide do deus cristão, é insensatez zombar das divindades do futebol e seus eleitos.

Decerto não ignoro o funesto em nome dos júbilos. Sucede que daquela Libertadores não se apagam igualmente o seu epílogo e a desolação que de imediato atingiu cada uma das vigas do Mário Filho. Assim como as declarações precipitadas que pontuaram a separação entre Washington e as Laranjeiras, gerando feridas que alguns insistem em manter abertas. Mas o fato é que do lado de lá reinou a infelicidade, e o regresso não tardou a ocorrer. Chegara com o Campeonato Brasileiro já em curso e com o desígnio de substituir o recém-lesionado Fred. Preocupado, o artilheiro tratou logo de fazer com aplicação o que sempre soube, de modo que o torcedor habitual, movido pelo imediatismo, reconciliou-se às pressas com o recente desafeto. Caros, foi então que, em meio às novas núpcias, as conclusões de Washington passaram a evitar as redes qual criança fugindo do primeiro dia de escola! No longo jejum que se arrastou dali em diante, nosso protagonista enfrentou de tudo um pouco: difamação pelos tricolores, vaias de adversários que à época nutriam objetivos comuns, ovações pelos companheiros de outrora em terras paranaenses (pior do que vacilar ante a baliza oposta, somente marcar contra o próprio escudo!). Ainda assim, restava a certeza de que algo permanecia nele imaculado. Não foi à toa que o heróico Conca, ao decretar essencial vitória frente ao Grêmio porto-alegrense, transferiu a Washington todo o mérito que era seu por direito. Não podia ser! Em face dos sinais, os mais versados nos roteiros do futebol deixavam-se tomar pela ousadia: – "Ele ainda fará o gol do título!", vaticinavam cidade afora rodada após rodada, em gracejos que não deixavam de trazer consigo uma pontinha de profecia rodriguiana.

Faltava uma vitória. Fluminense e Guarani se enfrentavam pela última rodada em um Rio de Janeiro ansioso pela proclamação tricolor. Duelo de primeiro tempo atravancado, nervoso, de tantas unhas roídas e cardíacos monitorados. O ímpeto pela festa esbarrava na ausência de gols, e assim chegamos ao intervalo. A etapa complementar iniciou-se como terminara a precedente, de sorte que a atmosfera inflava-se cada vez mais de gravidade. Até que, antes mesmo dos dez minutos, Julio Cesar – a languidez personificada em campo – desaba, exaurido. Olho para a beira do gramado à procura do substituto convocado por Muricy e... adivinhem! Era Washington e, junto com ele, o desconforto de quinze partidas em branco sobre os ombros. A reação das arquibancadas? Afirmo com absoluta convicção que até mesmo o mais pessimista dos torcedores acenou com um gesto de esperança naquele instante. Se não o fez de modo ostensivo, garanto que ao menos esboçou em seu íntimo uma reviravolta de ânimos. Tudo se justificaria cinco minutos e meio após a primeira passada do atacante, quando surgiu o lance capital. Peçam para que qualquer tricolor o descreva. Os mais detalhistas talvez comecem a reconstituição pelo lançamento sem destino de Gum, ao passo que os sucintos logo lembrarão da insistência de Carlinhos pelo flanco esquerdo: a investida vã sobre o zagueiro, a recuperação do lateral, a astúcia requisitada para se livrar da marcação e abrir espaço para o cruzamento fatal. O fim, por sua vez, virá com o arremate de Emerson e seu tornozelo debilitado, passando sob as pernas tanto do beque quanto do arqueiro alviverdes. Mas eis aqui o fenômeno: nenhuma das narrativas haverá de esquecer que o percurso feito pela bola encontrou-se um segundo antes com Washington. Um desvio tão sutil como imprescindível – era mister que ele estivesse ali, registrado nos eventos que passaram a povoar o imaginário verde, branco e grená. Muitos dirão que isto nada prova; pelo contrário, para legitimar o que escrevo teria sido preciso que ele mesmo convertesse a cabeçada desferida, livrando-se da má fase com o nome cravado enquanto autor máximo, e não mero participante. Pobres objetivistas. Mal sabem eles que a presença de Washington no quadro derradeiro da conquista indica um fato inexorável, posto que latente ao olhar da multidão: sozinhos, os números na superfície do papel jamais serão suficientes para que se exalte um jogador pelos seus feitos – o que importa, no fundo e sempre, é a intensidade com a qual ele obriga a pulsar o distintivo que ostentamos com orgulho junto ao peito.

Diego B Ramalho
Enviado por Diego B Ramalho em 23/06/2012
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