tudo certo
"Penso, às vezes, com um deleite triste que, se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases que escrevo durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me compreenda, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu, a só desafeição que houve, quando vivo".
Meu menino quer ter um banda de roque quando crescer. Meu outro menino, também. Cantam, ambos: "é o mensageiro das almas dos que virão ao mundo depois de nós"! Eu quero apenas o sonho de ambos em carne, em dias reais. Quero a tentação de noites sóbrias e sobre nós a lua e por entre nós a falta, a doença corrente nas veias e corpo e mente prontos a não se deixarem ruir. Não quero nunca mais a entrega ao vício, a esse vício que me esconde da frieza do olhar, da infidelidade dos pares, do amarelo nos olhos e que me mostra, em mágica alucinação, a lua sempre perto, a lua sempre pronta. Alta, a lua, sempre. Não quero. Não posso.
Meu pequeno me mostra um homem na praça. As muletas ao chão e o homem também. Um braço sobre os olhos e o outro sobre a perna. Exposta ferida, sangue vivo no centro da praça, na porta da frente da sorveteira onde meus dois anjos se sentam.
E como eu fosse herói, como eu fosse sempre o que se presta sempre a dar a mão, meu filho me indica minha obrigação e pede o sorvete e não se dá conta, não quer se dar conta de nada mais que aconteça ao seu redor.
O pai dele haverá de cuidar. Sabe que o pai não deixará ninguém em sangue vivo, em ferida exposta em praça aberta a ninguém. Por isso pede o sorvete e canta uma ininteligível canção, enquanto já me imagina encaixando os ossos à solta sob a pele do homem na praça;
já me imagina fechando a ferida e estancando o sangue que escorre da perna do homem, pelo meio da praça.
O que me há de dor, não pode se assemelhar à dor do homem que ninguém se dá conta. No meio da praça. Da minha dor, cuido eu. E os corticóides e analgésicos; o repouso, a cama quente, o afeto de anjos, o abraço de anjos. Os anjos cuidam de minha dor.
Atravesso a rua e o homem no meio da praça parece estar bêbado. O cheiro de álcool é forte. Não há nenhum anjo por ali. A perna em ferida aberta, sangra. Ele não geme, não se mexe, parece não respirar. Estaria ali há que tempos? Que Deus não manda ninguém ao socorro de quem precisa? Chego talvez tão tarde. Tento acordar o homem e ele resmunga de dor. Ergue o pescoço, a custo, e tira do bolso papéis. Não há versos. Não há poesia nenhuma nos papéis. Registros de passagens pelo pronto-socorro. João Márcio, nascido depois de mim, no norte de Minas, liberado pelos médicos do pronto-socorro com uma perna quebrada e ferida em sangue vivo.
- Você bebeu? - pergunto
Ele ri, se contorce de rir, se contorce de dor:
- É claro que bebi. Toma esta perna e não beba!
Ligo para os Bombeiros. A voz rouca, firme e grossa quer saber onde estou. No meio da praça. Quer saber o que houve, quando houve, com quem houve, se esse quem está bêbado, se tem passagem pela polícia, residência fixa, carteira assinada...
Eu não colocarei o homem em meu carro. Já se somam dois que se foram deste mundo dentro do meu carro. Não faço mais isso.
Digo ao policial que vejo o homem deitado na praça e sei que ele não sobreviverá se passar a noite ali, no meio da praça, no meio do sangue, com a ferida exposta, aberta...
O policial quer falar com o homem. Não deixo. Ele não confia em mim? Por que não confiaria em mim? Há dois anjos que confiam em mim. Anjos. Não um homem qualquer que se esconde em fardas e se acha e se faz, pela força, melhor que qualquer outro que se ponha à sua frente, ao seu redor. Não vai falar com o homem.
- Vocês têm que vir, caramba!
Desligo o telefone. João Márcio pede água. Busco a água. Ele bebe a água. Quisesse talvez álcool. Como eu, precisasse de álcool. Mas ele não pode, como eu não posso.
Os Bombeiros chegam rapidamente e querem saber quem ligou.
Estou sentado no banco ao lado do homem e me apresento. O capitão sorri e me reconhece. Dá-me um abraço e, sem se dar muita conta do homem deitado aos nossos pés, pergunta se ainda jogo xadrez. E pergunta por que não disse meu nome quando liguei.
Eu não respondo nada. Por que eu deveria dizer meu nome? Para mim teriam vindo? Mais rápido? E se eu dissesse João Márcio? Não viriam nunca?
Eu não jogo mais xadrez. Não bebo mais. Não devo mais sair de casa. Nem de dentro de mim. Volto aos meus anjos. Sabem que está tudo certo. Que tudo está sempre certo.