Crônicas de uma civilização órfã


     Deixam as casas, nas calçadas das ruas de sombra, os que trombam e tropeçam nas esquinas, nos bancos das praças, nos viadutos, nos bares, nas salas de aula.  Escrevem os livros que vendem tanto, vendem o corpo, as esquinas, picham os viadutos, a aprenderem nos bares, se viciam nas salas de aula. Sentam nos bancos das praças, onde a iluminação é fraca, de lado a lado, confundem-se os vaga-lumes silenciosos no que desviam das balas perdidas que por vezes encontram um alvo.


     Esbarram por aí e levam consigo a poeira dos corpos, inspiram o ar contaminado e expiram a desconfiança na respiração. O mundo está empoeirado, seco, tóxico. O ar que respiro hoje está poluído. Hoje, pesco um relógio adiantado num, outrora, rio de peixes, e avisto um pássaro barulhento que não tem ninho. E o pássaro cego, bate nos prédios irmãos e um, após o outro, desabam a entulhar as esquinas onde tropeçavam as pernas cegas. Mas o prédio que cai lá de vento, de bomba, de terremoto, cai aqui, de tristeza. Cai o relógio, para o tempo, gira o mundo. O relógio não conta mais o tempo, está velho, lento. Dá-lhe corda pra quê, compro novo, os restos para o lixo, o tempo não pára. No bar sem relógio, com humor a descontar as horas que perdi trombando ou sentado, nas salas de aula, nos bancos das praças, na areia das praias. Podia voltar para casa, naqueles bons tempos.


     Hoje não, estou bêbado das aulas do mundo, aprendi a aprender com os que não aprendem mais. Estes fizeram do mundo um vício, e traficam um conhecimento pago, calculado por calculadoras padronizadas. E essas esquinas querem promover o encontro sustentável do vaga-lume com a bala? Um mundo sustentável... existe para preservar as árvores que consomem o gás carbônico que produzimos, as nascentes que possibilitam a nossa prosperidade, a tranqüilidade da consciência humana que se reproduz. Mas há sacrifício, e sacrificamos...


     A guerra se apoia nos ombros do perdedor para que haja um vencedor. O rico se apoia no pobre para se ostentar, o pobre o contrário... A escuridão sacrifica a luz para ser o que é, os contrastes existem para que possamos ser inteligentes. Se os contrastes são contemporâneos, geram espanto, se de tempos diferentes, constatação. Mas nas esquinas se encontram, vindo de ruas diferentes, por um segundo blasfemam não respirar o mesmo ar! Copiamos o erro e erramos, copiamos o acerto e erramos mais uma vez. Os irmãos que caíram não caíram de repente, para que parássemos nas esquinas e olhássemos para o alto. Da guerra de dois deuses diferentes, muitos ficaram soterrados pelos escombros, restos de computadores, aviões, papéis, suor, escadas, concreto. Outros retiraram os escombros e viveram, viveram mais concretamente.


     Uma celeuma, e quem inflamar o tom de voz é escutado primeiro e se livra logo de sua maceradora ansiedade. Mas no momento em que o pesar domina o cenário, um só minuto de silêncio é necessário para traduzir mil pesares. É a prova inefável de que a palavra de dor não chora e sim o choro enrustido de dor é a palavra. Explosões... Perdas... Existe uma certa quantidade de energia para a vida, mais ou menos que isso é um risco. Mas puxou-se o gatilho contra o bom senso e uma revolução contra o limite se inicia. O câncer só quer crescer; o amante só quer amar; o cérebro, aprender... Os olhos querem a tudo ver, ou no mínimo as pegadas. Vamos deixar a fé para os que se encontram lá no fundo do abismo... Bons o suficientes para nunca estar lá. Limitados na forma, no tempo e no espaço, alvos fáceis do próprio progresso, desaparecemos várias vezes a cada fragmento de um instante e não sentimos mais saudade de já termos sido algo.
     Os vaga-lumes falam quando a iluminação enfraquece. As balas se calam ao ruir dos escombros. Ainda menosprezam a vida pelas limitações, quando pregam o descanso eterno de suas almas, longe da decepção cansativa de se viver, a fugir da sensação de impotência contumaz em dizer que não somos Deus.
     Aí falta humildade, agir como tal e não se denominar. Talvez não sejamos oniparentes, onipresentes ou oniscientes. Então que uma bala perdida nos prive de nossa onipotência. Resta que algo continue a espremer a vida em seus dedos e conceda alguns anos para que possamos espiar por aí, tropeçar menos nessas esquinas, mudar os bancos de lugar, aprender a aprender nas salas de aula, desocializar a gratidão... Talvez um dia seja proclamada a nossa liberdade real.


     Hoje, travarei a última luta, no ringue das esquinas, dos prédios, das casas, das pessoas, do relógio... Travaria... Muitos anos se passaram, os precipícios estão lotados dos cadáveres virtuosos, os rostos, fartos das lágrimas, o tempo, torto de tanta ansiedade, o espaço, abarrotado de tanto vazio, os punhos, quebrados e sujos de sangue. Os olhos admirados ordenam aos lábios que se mexam; e articulam precocemente uma derrota para a vida. Ela sequer compareceu para lutar.



 Leonardo Faria

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Enviado por mindasks em 21/06/2012
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