Diário de Sonhos - #001: Vô
Diário de Sonhos
Entrada #001 – Vô
Há uns dias atrás eu estava saindo de casa, atrasado para a faculdade. Então lembrei que precisava de dinheiro para algumas impressões e voltei para buscar. O telefone tocou e alguém disse lá do outro lado “Renan, seu avô morreu”. Quase que instantaneamente eu respondi com um “oh, que pena”. “Renan, preciso falar com o seu pai, dá pra chamar ele?”. Eu respondi: “desculpa, mas ele não mora mais aqui”. “Como não?!”, a pessoa do outro lado insistia. Após ouvir um monte de reclamações a pessoa se deu por vencida e disse que ia tentar encontrá-lo no número que eu havia fornecido.
Este pequeno incidente revela o quanto eu estimava o meu avô. Quase nada. Pra mim não passava de um velho ranzinza que vivia isolado no meio do mato com uma dúzia de cachorros, pagando pelas inúmeras maldades que cometeu ao longo da vida. Mas ainda assim não podia deixar de enxergar algo de trágico, terrivelmente quixotesco naquela figura de setenta e tantos anos de idade. Neste ponto eu me identificava com meu avô. E também era aí em que terminavam nossas afinidades.
No livro “Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund Freud, logo nos primeiros capítulos, o autor afirma que os acontecimentos recentes e de grande importância não têm lugar em nossos sonhos. São os pequenos acontecimentos bobos do dia-a-dia, como acender um fósforo ou arrumar a cama, que agem em nossos sonhos. Embora eu discorde muito dessa afirmação, foi o que me aconteceu neste sonho.
Eu sonhei...
Sonhei que estava numa floresta com árvores bem altas e muito mato. Eu estava numa trilha que serpenteava ao logo da floresta. Não me lembro de nenhum som, com exceção da voz de meu avô; foi um sonho só de imagens. Comecei a andar pela trilha. Andei até que encontrei um velho cortando mato perto da trilha. Ele estava de costas pra mim. Vestia uma bermuda, uma camisa clara e um boné, além de usar óculos: era a figura de meu avô. Tive medo de me aproximar dele, então continuei observando. Ele reclamava em voz alta: “Morena, sua cachorra sem vergonha! Ah, Amarelão, sai pra lá Amarelão. Tólinha, vem cá Tólinha, fiu fiu fiu”. Então ele saiu do mato e veio para a trilha, carregando alguns arbustos no ombro. Logo atrás vieram alguns cachorros seguindo-o.
O velho andava devagar, mas eu o acompanhei, mantendo certa distância para que nem ele e nem os cachorros me vissem. Andamos algum tempo até chegarmos numa encruzilhada. Meu avô tomou o caminho da esquerda. Aguardei alguns minutos e finalmente fui até a encruzilhada. O caminho que meu avô tomou ia sendo fechado em cima por árvores, meio que formando um teto natural. A luz ia sendo bloqueada pela copa das árvores até a escuridão. Os outros caminhos eram mais claros. Isso e o medo de ser encontrado por meu avô me fizeram decidir continuar pela trilha que eu estava vindo.
Andei até atingir uma aldeia cercada por um rio. Havia moinhos de água. As casinhas eram de madeira com teto de palha. Eu vi crianças correndo com flores, mulheres de vestido trabalhando na horta. Me chamou a atenção um velho que estava sentado à porta de casa, fumando. Fui ter com ele. Mas antes que chegasse lá, vi meu avô saindo da casa do velho, com seu passo lento e pesado, seguido por cães. Corri para trás de uns arbustos e observei. Ele veio para fora e começou a gritar: “Tólinha, seu cachorro safado, sem-vergonha. Vem cá Tólinha, fiu fiu fiu”. Fiquei com muito medo e sai correndo pelo caminho por onde vim até chegar na encruzilhada de novo. Ia tomar o caminho oposto ao por onde meu avô tinha entrado anteriormente, mas antes que eu andasse apareceu um cachorro farejando, e meu avô logo atrás, andando devagar. E ele gritava, com voz rouca e rasgada: “Tólinha, Tólinha, cadê você Tólinha?”. Olhei para todos os lados, sem saber para onde ir. Não tive escolha e segui pelo caminho evitado. Conforme adentrava, a luz ia desaparecendo, como se estivesse chegando a noite. As árvores foram se fechando, o caminho estreitando. Chegou a noite. Tudo estava escuro e eu mal podia encontrar a trilha. Havia velas iluminando o caminho. A voz gritou atrás de mim, não muito longe “Tólinha!”. Comecei a correr. As velas passavam rápido; pequenas luzinhas correndo no sentido oposto. Então a trilha ficou mais larga num trecho, formando um círculo. Havia uma poltrona velha de madeira, uma geladeira e uma televisão ligada. Apenas diminui o passo pra poder ver melhor, mas tão logo a voz gritou de novo eu voltei a correr. Corri como louco. A trilha encurtava e alargava, encurtava e alargava. E em todos os trechos largos havia sempre a mesma configuração: uma poltrona velha de madeira, uma geladeira e uma televisão ligada. Continuei correndo até chegar num beco sem saída, uma parede de tijolo. Havia várias prateleiras com livros, parecendo uma biblioteca. Havia também alguns brinquedos, como uma bicicleta, carrinhos, uma bola. Do alto, pendurados sabe-se lá de onde, haviam objetos feitos com galhos que lembravam pessoas com os braços e as pernas esticados. Aquilo me assustava muito. Num canto havia um barril, e sobre ele um pequeno tambor, todo desenhado com estranhos símbolos. Ao lado do tambor havia um pequeno boneco de vodu, todo espetado com agulhas e manchado de sangue. Na parede logo atrás, estava desenhado um grande olho aberto com giz branco. Apesar do medo, eu peguei o tambor e toquei. Então aconteceu. Como num filme, a cena cortou do nada e foi para um plano bem próximo do rosto de meu avô. Foi a primeira vez que vi seu rosto no sonho. Não sei dizer qual era a sua expressão, mas era assustador.
E então eu acordei...